“A política é a arte de construir horizontes. Qual horizonte queremos ter em 2030?”. Com essa provocação, Ricardo Morishita, professor de Direito do Consumidor do IDP – Instituto Brasiliense de Direito Público, deu início ao painel do evento A Era do Diálogo intitulado “Ideias para otimizar as relações de consumo no Brasil até 2030”. Nesse exercício de pensar o futuro das relações de consumo, marcado por novas tecnologias e novos comportamentos do consumidor, o especialista destaca a necessidade de deixar o modelo antigo de regulação, caracterizado pelo comando e controle, para adotar um modelo mais cooperativo, que permita uma construção conjunta por parte de consumidores, empresas e Estado.
“Precisamos trabalhar com transparência. Sem transparência, temos o problema da informação, que gera outro obstáculo gigantesco para o consumidor: a escolha. Mas, a transparência é espinhosa, afinal, nem sempre coincide com os mesmos objetivos. Como podemos propor uma medida de transparência, de informação e de escolha consciente, seja a partir de uma política governamental, seja na perspectiva do mercado?”, provoca Morishita.
Para Melissa Felipe Gava, founder & CEO da MOL, isso representa o maior desafio das relações de consumo. “No Brasil, as empresas lidam com o problema quando ele ‘estoura’. Não à toa, somos o país com mais litígios e com a justiça mais cara do mundo. É preciso fazer o exercício de olhar de cima, para entender onde tudo começa, porque, quando olhamos de baixo, muitas vezes encontramos um problema que já não tem soluções”, afirma.
A partir dessa mudança de perspectiva, torna-se possível não apenas resolver o problema a partir de uma reclamação do consumidor, mas antecipar-se a ele, de forma a evitá-lo. Integração de dados, inteligência analítica, Inteligência Artificial e outras ferramentas já permitem que essa postura mais preditiva e proativa se torne uma realidade dentro das empresas.
Por outro lado, as políticas governamentais ainda trabalham para correr atrás do prejuízo. “Diferente do setor privado, que tem um planejamento, que tem diretores que permanecem durante o tempo, o poder executivo acaba trabalhando em cima daquilo que é demandado, e não atendendo as demandas de forma planejada, coordenada. Isso porque, quando muito, trabalhamos com gestores que permanecem por quatro anos. Então, temos alterações contínuas, com mudanças, inclusive, de prioridades. Por isso, costumo dizer que a única política pública de defesa do consumidor que o País tem é o Consumidor.gov”, afirma Vitor Hugo Amaral, diretor da Senacon.
Como exemplo prático disso, Vitor Hugo traz os cancelamentos em massa de pacotes de viagem em 2023, o que obrigou a Senacon a focar os trabalhos em uma regulação para o setor, evitando que os consumidores saiam no prejuízo. Mais recente, a tragédia das chuvas no Rio Grande do Sul está demandando uma grande atenção da secretaria. “Planejar é muito difícil, por isso o nosso maior desafio é dar efetividade ao Código de Defesa do Consumidor”, afirma.
Vulnerabilidade e inclusão
Para a Agenda 2030, lançada pelo A Era do Diálogo 2024, duas questões se destacam: o reconhecimento das vulnerabilidades do consumidor e a necessidade de trabalhar inclusão com mais efetividade. Apesar de estarem presentes no Código de Defesa do Consumidor, essas frentes precisam ganhar mais atenção.
É o que alerta Cid Torquato, CEO da ICOM. “Represento um segmento esquecido nas relações de consumo. Só agora começamos a discutir como atender a pessoa com deficiência. Isso não está na agenda por uma série de questões, mas as principais envolvem o preconceito e o capacitismo – impeditivo tremendo para que haja discussões dentro das empresas e na sociedade. São raras as empresas que estão em dia com a inclusão das pessoas com deficiência, é muita gente que está sendo desconsiderada nos processos de atendimento. As empresas não sabem lidar com a pauta e pouco tocam nesse assunto.”
Nesse sentido, Lucas Pittioni, vice-presidente Jurídico e de Políticas Públicas do iFood, entende que políticas públicas e iniciativas empresariais precisam coexistir. “Na medida que empoderamos o consumidor com mais informação, mais transparência, para que ele possa fazer decisões mais informadas, existe uma tendência natural que empresas que fazem a coisa certa sejam escolhidas. Mas o Estado também não pode se eximir da sua responsabilidade de impor metas, de cobrar desdobramentos e de fazer com que a pauta ande com mais velocidade.”
Dentro do iFood, a inclusão é abordada a partir de três pilares principais, como explica Pittioni. O primeiro deles é o entendimento de que não é possível ser uma plataforma acessível se a empresa não for diversa e levar em consideração essa diversidade nas tomadas de decisões. “Antes precisamos trabalhar o nosso próprio corpo de funcionários e ter ações afirmativas que possam ir ao encontro das necessidades dos consumidores. O segundo ponto é investir em treinamento, para capacitação das pessoas nos momentos de decisão. O terceiro é contar com parceiros, aprendendo com quem entende mais do que a gente”, conta.
Dessa forma, torna-se necessário conhecer as vulnerabilidades de cada consumidor e compreender as situações em que essas vulnerabilidades podem ser agravadas para reduzi-las e, de fato, garantir a inclusão. Por isso, a principal preocupação do Magalu está em conhecer o seu público e atendê-lo da melhor forma possível.
“Para isso, precisamos estar muito seguros no que acreditamos como diversidade e transparência dentro de casa”, afirma Ricardo Querino, diretor de Atendimento e Experiência do Cliente do Magalu. “Entendemos a importância de trazer práticas afirmativas para dentro da companhia, o que ajuda a lidar com visões diferentes para conseguir personalizar e oferecer um atendimento que faça sentido para todos os consumidores. Nós só vamos ser capazes de garantir relações diversas se houver muita consciência e consistência no trabalho que é desenvolvido da porta para dentro”.
Diálogo em primeiro lugar
No desafio de tornar as relações de consumo mais conscientes e sustentáveis, o diálogo se mostra como o principal caminho. A partir dele, todas as questões que envolvem a Agenda 2030 poderão ser conversadas e resolvidas entre empresas, consumidores e o setor público.
“A atualização recente do Código de Defesa do Consumidor contempla o consumo responsável, consciente e sustentável. Cabe a nós efetivar o que lá está. Temos algumas frentes para isso, como a prevenção e o tratamento do consumidor superendividado para evitar exclusão social e o equilíbrio entre o desenvolvimento tecnológico e a defesa do consumidor. É dever de todos promover a educação para o consumo, para que de fato a gente tenha relações equilibradas, harmônicas, que envolvam o interesse dos consumidores, mas também os interesses das empresas”, finaliza Vitor Hugo.