Esta semana, um projeto de lei polêmico e que promove uma grande mudança na rotina dos Procons em todo o País deve iniciar a jornada de votação no plenário da Câmara dos Deputados, inclusive com grandes chances de ser aprovado antes do início do recesso parlamentar do fim de ano.
O projeto de lei, de autoria do deputado Marco Bertaiolli (PSD), muda desde o jeito de calcular multas (a dosimetria) aplicada pelos Procons, prevê a criação de uma espécie de instância superior das sanções e modifica até mesmo algumas rotinas da fiscalização, tais como a proibir a aplicação de multa na primeira visita ao estabelecimento comercial. Existe a proposta prevê a possibilidade de substituir a multa por outra punição.
Órgãos de defesa do consumidor não aprovaram o projeto, mas acreditam que ele pode ser a oportunidade para discutir o empoderamentos dos Procons no País.
Duplicidade de multa
Uma das medidas previstas no PL é um velho pedido de setores da economia: a chamada duplicidade de multa.
Em linhas gerais, a proposta do deputado é impedir a aplicação de múltiplas multas aplicadas por Procons de diferentes cidades ou estados por uma mesma irregularidade. E como isso seria feito?
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A proposta prevê que uma autoridade do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC), no caso a Senacon, ou uma órgão estadual poderia rever a aplicação da multa de um Procon municipal ou Procon estadual e até aplicar uma nova multa.
O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) analisou cada ponto da norma que está em discussão desde agosto. Sobre a possibilidade de revisão da multa por uma espécie de instância superior, a entidade afirma a medida é inconstitucional pela independência dos entes federativos, no caso a União, Estados e municípios.
“Tanto a autoridade estadual como a federal não possuem autoridade constitucional para avocar as competências municipais e estaduais respectivamente sob pena de violação do pacto federativo. Além disso, não existe no direito administrativo brasileiro, instituto jurídico para garantir validade de ato administrativo de órgão federal ou estadual sobre entes estaduais e municipais no sentido proposto no PL”, explica a análise do IDEC.
Na prática, segundo o IDEC, a proposta poderia ser formalizada e seria constitucional caso houvesse a assinatura de uma cooperação entre um estado e a Senacon, uma prefeitura e um procon estadual, entre outros formatos. Essa possibilidade, inclusive, está presente justamente no projeto de lei.
Em São Paulo, por exemplo, há uma espécie de hierarquia entre a imensa maioria dos Procons municipais e a Fundação Procon São Paulo. Pelo acordo, o Procon estadual delega o seu poder de fiscalizar e autuar para procons municipais por meio da assinatura de um convênio. Na prática, quando um agente fiscal do município entra numa loja, ele atua em nome do Procon estadual paulista.
O convênio prevê ainda que o auto de infração é do Procon SP, o processo administrativo tramita na sede e a multa é calculada de acordo com as regras estabelecidas. O convênio estabelece que existe um único entendimento sobre determinado procedimento.
Substituição da multa: reinvestimento na própria empresa?
Outra mudança prevista no projeto de lei é a possibilidade da substituição da multa pela realização de investimentos em infraestrutura, serviços, projetos ou ações relacionadas ao dano do consumidor.
A prática não chega a ser uma novidade no País, porém a ideia é ela ser efetivamente institucionalizada no País. Em um passado recente, a Senacon chegou a substituir uma multa de R$ 8 milhões aplicada contra a Crefisa por investimentos importantes no portal Consumidor.gov.br.
No entanto, especialistas em direito do consumidor como Érico Rodrigues de Melo, presidente da Associação Procons Paulista (APP) vê com preocupação com a atual redação sobre a substituição da multa.
“Do jeito que está, penso que a proposta abriria a possibilidade até mesmo de um reinvestimento (da multa) na própria empresa. Não seria algo de todo ruim, mas é preciso analisar o caso concreto. Além disso, o projeto desce no detalhe, o que não cabe ao nosso CDC, que é uma norma principiológica”, afirma Érico Rodrigues de Melo, presidente da Associação Procons Paulista (APP).
Mudança no cálculo
No entanto, um dos pontos que tem incomodado Érico e os demais especialistas é a mudança no jeito de calcular a multa. Mas como funciona nos dias de hoje?
Se um supermercado de uma grande rede é flagrado vendendo um produto vencido, o Procon aplica uma multa com base no faturamento bruto da rede. No entanto, o PL muda isso. A ideia é que a punição ocorra com base nos ganhos da loja que cometeu a irregularidade.
O atual modelo de cálculo há tempos incomodam empresas, que buscam reverter a aplicação da multa no judiciário. Hoje, esse é o principal motivo de judicialização entre empresas e Procons no País, segundo revela um inédito estudo publicado com exclusividade na última edição da revista Consumidor Moderno.
De acordo com o levantamento, dos 738 acórdãos (ou decisões superiores) que envolvem empresas e Procons analisados pelo estudo, quase a metade (367) questionam multas entre R$ 10 mil e R$ 50 mil. VEJA A REPORTAGEM COMPLETA AQUI.
No entanto, a média de São Paulo é bem peculiar. Ao contrário da maioria dos outros Estados da Federação, grande parte dos processos judiciais discutem valores que superam R$ 1 milhão.
Entre 2019 e 2020, o estudo identificou 28 processos que envolviam valores acima de R$ 1 milhão em todo o País. Desse total, o Estado paulista concentrou 57% das ações milionárias ou mais precisamente 16 casos.
Faturamento líquido ou bruto?
O Projeto de Lei também promove uma alteração aparentemente singela, mas que teria um impacto significativo no trabalho dos Procons: a multa seria calculada com base no faturamento líquido e não o bruto – justamente o que acontece nos dias de hoje.
Hoje, obter o faturamento bruto de uma empresa, mesmo à revelia da empresa, não é difícil. Se a companhia se recusa a passar determinada informação, o procon tem condições de obter essa informação em órgãos públicos.
A mudança proposta no PL, segundo especialistas, poderia resultar em dois problemas. Primeiro, a informação sobre o lucro líquido é uma informação que precisaria ser obtida apenas nas empresas.
“O faturamento líquido não tem lugar nenhum, apenas na empresa. É ela quem faz o cálculo descontado as despesas. Como poderemos comprovar a informação do faturamento líquido?”, questiona Marcelo Nascimento, presidente da Procons Brasil.
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Na análise do projeto de lei, o IDEC tem uma posição parecida. “A proposta não é eficaz, por ser impossível de ser efetivada. Não há documentos contábeis que possam mensurar as receitas de fornecedores especificamente às linhas diferentes de produtos e serviços relacionados à infração. Além disso, diversas são as práticas infrativas que não se relacionam diretamente à produtos ou serviços específicos, mas sim a posturas ilegais que independem de uma ou mais linhas de produtos e serviços. O dispositivo também impede a autuação de práticas ilegais relacionadas a produtos e serviços ainda sem registros de vendas. Ademais, a mensuração de receita líquida não pode ser aferida com objetividade pelos órgãos fiscalizatórios, enquanto que a bruta sim”, afirma o relatório.
O acesso ao lucro líquido ganha contornos ainda mais complicados se o Procon tiver que obter tal informação de uma loja e não o grupo econômico. Isso porque, segundo explica Marcelo, há casos em que a rede ou grupo econômico possui apenas um CNPJ. Ou seja, a empresa teria que levantar a informação sobre o faturamento específico de um loja, o que poderia ser mais um obstáculo para a aplicação da multa.
Dupla visita
Além da mudança no cálculo, o projeto de lei muda outro tema relacionado a multa: a proibição dela dessa punição na primeira visita, exceto nos casos considerados “gravíssimos”.
Especialistas ouvidos pela CM explicam que a prática de uma dupla visita dos procons já é uma realidade para a maioria dos procons. Muitos preferem adotar uma postura educativa antes de aplicar uma multa, exceto em casos que possam prejudicar à saúde do consumidor. Nesse caso, há infração de multa imediata.
O Procon-SP, que também é contrário a diversos pontos da lei, defende um critério diferente de dupla visita. Ela seria autorizada apenas para pequenos empreendedores. “O critério da dupla visita deve ser voltado apenas para as microempresas e empresas de pequeno porte, muitas vezes empresas familiares ou formadas por pequenos empreendedores, que precisam de tratamento diferenciado para se manterem no mercado. Mas não se justifica aplicá-lo para grandes empresas e grupos econômicos. Não se pode colocar no mesmo patamar fornecedores com ampla capacidade técnica e econômica e pequenos fornecedores que necessitam de orientação para adequação da sua conduta”, afirma o Procon em nota.
Um detalhe que chama a atenção de especialistas seria o uso da palavra “gravíssimo” como único motivo para a aplicação da multa na primeira visita. Segundo observa Érico, não há dentro do direito do consumidor a expressão gravíssimo, ou seja, não é possível afirmar quais irregulares são piores do que outras.
“Gravíssimo não existe no mundo consumerista. Nem no estatuto da microempresa. Esse é o outro para discussão. Particularmente, eu entendo que produto que põe em risco a saúde do consumidor poderia ser gravíssimo, mas isso não está escrito. Isso representa outro risco para a judicialização”, afirma.
Para o IDEC, o ideal seria abolir o termo “gravíssimo” para infrações leve e grave. “A legislação brasileira já adota de forma muito eficiente os conceitos de infração leve e grave, a exemplo do Dec. 2181/1997, há muito consolidado. O conceito de infração grave previsto no exemplo do referido decreto é seguro o suficiente para garantir razoabilidade e proporcionalidade. Além disso, a própria Lei 9784/1999 apresenta o conceito de ‘risco iminente’ em seu artigo 45 com bastante eficácia na adoção de medidas acauteladoras”.
Entidades vão apresentar propostas
O projeto de lei já foi incluído na pauta do plenário da Câmara e tramita em regime de urgência. Por enquanto, o PL não possui um relator, porém isso parecer ser um problema para a proposta. Existiriam pelo menos 30 parlamentares na disputa pela relatoria da proposta, o que poderá ser definido nesta semana.
Além disso, a proposta conta com o apoio de entidades que representam setores produtivos da economia, caso do comércio, e contaria com a simpatia do presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas).
No entanto, antes que o projeto seja votado no plenário, entidades de defesa do consumidor, caso da ProconsBrasil, APP e IDEC querem participar do debate sobre o projeto e até propor mudanças ao projeto original.
“Solicitamos ao deputado federal autor da proposição que seja assegurado o diálogo com os PROCONs antes que seja votado, para que o projeto assegure, efetivamente, o compromisso com a proteção e defesa do consumidor”, afirma Marcelo.
A ProconsBrasil se reuniu na última quinta-feira com o autor do projeto, que pediu que as entidades enviassem sugestões para o aprimoramento do projeto. A ideia é que sugestões sejam encaminhadas até a próxima quarta-feira (1).
Ao que tudo indica, a proposta que será apresentada pelos órgãos de defesa do consumidor devem incluir pontos importantes de projetos já em discussão no Congresso Nacional. Uma delas é de autoria do senador Rodrigo Cunha (PSDB-AL), que, entre outras, prevê que decisões administrativas dos Procons tenham força de decisão extrajudicial.
“Nos últimos dois anos, percebemos que propostas de ampliação de direitos do consumidor caminham muito mais lentamente, e são aprovadas com muito mais dificuldade. Já os projetos de lei que visam retirar direitos dos consumidores em proteção aos empresários estão avançando e sendo aprovados com muito mais facilidade. Diminuir direitos dos consumidores ou enfraquecer as instituições que nos defendem é um erro político enorme. Não é momento para enfraquecer os Procons, mas sim de ampliar e modernizar seus poderes”, afirma Igor Britto, diretor de relações institucionais do IDEC.
“A importância dos Procons na solução de conflitos é cada vez maior na nossa sociedade. Os Procons municipais e estaduais são instituições responsáveis por registrarem elevados índices de acordos extrajudiciais, proporcionando soluções mais rápidas e contribuindo para diminuir o impacto no Poder Judiciário, garantindo a defesa do consumidor, que é a parte mais vulnerável da relação de consumo e o principal alvo do Código de Defesa do Consumidor e da Constituição Federal”, explica Fernando Capez, diretor executivo do Procon-SP.
Já na visão de Marco Bertaiolli, deputado e autor do projeto, o projeto visa dar maior segurança jurídica e pelo menos minimizar “práticas leoninas” dos Procons. “Se por um lado a norma trouxe uma maior segurança para as relações de consumo no Brasil, por outro ela possibilitou uma ação descoordenada e muitas vezes leonina das autoridades fiscalizatórias com relação às empresas. A descoordenação é explicada pela atuação federal, estadual e municipal redundante sobre a mesma causa da sanção. Já a atuação leonina é explicada pela aplicação de multas calculadas sobre o faturamento de todo o grupo econômico quando a infração foi realizada por uma pequena unidade de negócios, o que demonstra falta de aderência do impacto da infração com relação a sanção recebida”, afirma o deputado na justificativa do projeto”, afirma na justificativa do projeto.
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