Em abril de 2017, um grupo de fiscais da Fundação Procon São Paulo realizou uma operação de rotina nos açougues de supermercados paulistas para verificar a qualidade da carne. Na ocasião, os agentes identificaram irregularidades em 14 dos 17 estabelecimentos visitados, sendo que alguns locais caíram em uma espécie de zona cinzenta legal.
Foi assim. Na época, a multa aplicada aos supermercados tomou como base um decreto estadual de 2000 que, em linhas gerais, regula o manuseio da carne moída no ato da venda. A norma diz que o produto deve ser triturado no ato da venda e bem na frente do consumidor. No entanto, o que agentes encontraram foi uma situação bem diferente. Os estabelecimentos comerciais vendiam o produto já pré-moído, o que é proibido por essa legislação. Eis o que diz a lei estadual:
“A venda de carne fresca moída, desde que a moagem seja obrigatoriamente feita na presença do comprador e a seu exclusivo pedido”
Os supermercadistas, no entanto, disseram que não estavam ilegais – e podem ter razão. Segundo eles, os açougues seguiam as regras de uma norma da cidade de São Paulo de 2016. Nela, é o consumidor quem deve exigir que a carne seja moída na sua frente. Ou seja, na prática, caso ele não se manifeste sobre o assunto, o estabelecimento poderia vender o produto pré-moído. Veja o que diz a lei municipal:
“A carne deve ser moída na presença do consumidor, sempre que esse o exigir, e no tipo por ele solicitado”
Unidade de entendimento
Essa diferença sutil entre duas leis aplicadas em um mesmo território é algo relativamente raro no País. Por outro lado, o conflito de ideias ou entendimentos entre diferentes Procons sobre o mesmo tema costuma ser comum e se tornou um problema principalmente para as empresas brasileiras, que muitas vezes não sabem qual entendimento devem seguir para estar em compliance com a lei. Cria-se, assim, o ambiente perfeito para à judicialização.
A Fundação Procon São Paulo quer justamente acabar com esse tipo de divergência entre os órgãos de defesa do consumidor no estado. Para isso, a entidade aprovou recentemente a portaria de número 56 que, entre outras coisas, prevê a adoção de uma tese ou interpretação única para todos os Procons que sejam conveniados a Fundação – o que não é pouco.
“Uma das principais raízes do atraso do desenvolvimento econômico do Brasil é a insegurança jurídica. Tudo se transforma em polêmica no judiciário, que acaba consumindo nos serviços burocráticos de solução dos conflitos mais de 3% do PIB do país. É uma estrutura cara, demorada e que cria incertezas para quem vai investir no País. Portanto, uma das prioridades na gestão do Procon é eliminar qualquer tipo de insegurança jurídica oriunda da imprevisibilidade que iniba a entrada de novos investimentos, geração de empregos, recolhimento de tributos e crescimento do orçamento no estado de são Paulo”, explica Fernando Capez, diretor da Fundação Procon São Paulo.
Hierarquia
Mas como isso vai ocorrer na prática? O ponto de partida da iniciativa pioneira do órgão de defesa do consumidor paulista é o seu modelo de gestão – algo único no Brasil.
Hoje, o Procon São Paulo funciona em um modelo de fundação onde prefeituras de todo o estado paulista podem assinar com convênios para a criação de unidades de órgãos de defesa do consumidor no âmbito local. Existem 307 Procons no estado ligados à Fundação – o que corresponde a quase todos os órgãos existentes no estado ou cerca de 30% do total em atividade no País. Até o fim do mandato, segundo Capez, a ideia é chegar a 400 unidades.
Dentro desse modelo, a Fundação obriga-se, em contrato, a auxiliar na montagem da estrutura básica do Procon. Em contrapartida, a cidade se compromete a enviar parte do dinheiro arrecadado com as multas para a Fundação. Dessa forma, cria-se um modelo hierárquico único no Brasil, onde a Fundação ocupa o topo da cadeia.
A súmula vinculante do Procon
Essa hierarquia é a chave para a proposta de um entendimento único que será adotado pelos Procons paulistas conveniados a Fundação previsto na portaria de número 56. Ela cria no âmbito administrativo do estado um mecanismo muito conhecido no universo judiciário: a súmula vinculante.
Na prática, funcionaria assim: a Fundação emitiria um parecer sobre um determinado procedimento de multa ou entendimento sobre o que é ilegal sob a ótica da defesa do consumidor. Ao fazer isso, as unidades conveniadas devem necessariamente seguir essa regra. Caso ela desobedeça, a Fundação terá o poder de anular a multa ou qualquer outra forma de entendimento que seja divergente do Procon São Paulo.
“Em primeiro lugar, a vinculação se dará preventivamente por meio da orientação e da conscientização. Não funcionando a ação preventiva, ou seja, se em algumas hipóteses não for observada a súmula vinculante e houver a multa, a empresa poderá dirigir diretamente o seu pedido a diretoria executiva, que avocará imediatamente o processo e aplicará o entendimento da súmula vinculante. Todos os Procons municipais conveniados devem seguir essa súmula”, disse Capez.
Essas súmulas vinculantes do Procon São Paulo serão construídas a partir de decisões jurídicas das mais altas cortes do País e também com base na doutrina, ou seja, artigos ou teses de pessoas renomadas da defesa do consumidor.
“Nós estamos pesquisando doutrina e a jurisprudência mais atualizada do STF e STJ para concluir quais são as teses que já estão sedimentadas. As teses que já estão sedimentadas pela jurisprudência serão traduzidas em súmulas vinculantes do Procon e obrigará a todos os Procons municipais e os próprios servidores da fundação Procon de São Paulo o seu cumprimento”, disse Capez.
Assuntos
Os assuntos das primeiras súmulas ainda estão sendo discutidos internamente no Procon, mas um deles é dado como certo: o procedimento que a empresa deve adotar em caso de produto com defeito. E o tal produto é nada menos que o smartphone.
Hoje, quando um consumidor reclama de um produto com defeito, normalmente o fornecedor assume o risco e efetua a troca. No entanto, esse procedimento não é tão simples quanto parece. Segundo Capez, o produto pode levar até 30 dias para retornar às mãos do consumidor após ser arrumado ou mesmo substituído.
Essa regra só não vale para o grupo conhecido como “produto essencial”. Hoje, o Código de Defesa do Consumidor não define o que é “essencial”, mas a jurisprudência e a doutrina entenderam que fogões, geladeiras e telefones fixos estão nesse grupo, por exemplo.
“Nesse caso (produto essencial), a troca é imediata, sem passar pela assistência técnica. Uma das teses que temos acompanhado é do professor (de direito do consumidor) Rizzato Nunes, que defende a ideia de que smartphones são produtos essenciais, pois sem eles podem ocorrer danos irreversíveis. Assim, estamos analisando a possibilidade de editar a nossa primeira súmula vinculante considerando celular um produto essencial para fins de troca imediata”, afirma.
No entanto, esse reconhecimento do celular como produto essencial não seria aplicada em todos os casos. A ideia seria usar apenas em uma situação onde o consumidor adquire o produto, não testa o celular na loja e identifica um problema ao chegar em casa. Ainda se discute se uma tela quebrada, por exemplo, seria passível de troca.
Existem outros assuntos em discussão e que podem impactar até mesmo empresas de tecnologia, como é o caso do Google. Por ora, não se sabe ao certo o impacto da medida, mas a iniciativa paulista pode ser a primeira no estado a colocar a defesa do consumidor em uma nova perspectiva: a proteção das relações de consumo, o que incluiu também as empresas.
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