Até 2019, ou antes da pandemia, muitos executivos repetiam sobre os benefícios da transformação digital, especialmente para o relacionamento com o consumidor. Esse dia finalmente chegou com a pandemia. E o que se viu foi que do discurso à prática, há um certo distanciamento – com o perdão do trocadilho
O fato é que a pandemia expôs as virtudes de quem realmente migrou ou iniciou a trajetória virtual do negócio e, ao mesmo tempo, exibiu as fragilidades de quem apenas discursou para torcida – ou consumidor, como queiram.
“O consumidor se digitalizou e aprendeu a usar os canais eletrônicos desde o último ano. Nós tivemos ainda a criação de lojas de diversos comércios eletrônicos e aqui deixo um dado: na pandemia, elas apareceram quase que a cada minuto. Quem não enxergou isso, terá problemas”, explicou Roberto Meir, Publisher da Consumidor Moderno, CEO do Grupo Padrão e mediador do último painel da edição 2021 de A Era do Diálogo.
O consumidor mudou. Você notou?
Na abertura do encontro, Meir destacou as mudanças ocorridas no comportamento do consumidor nos últimos anos. Com ela vieram algumas percepções importantes. Uma delas é que as amarras regulatórias se tornaram um desafio para o novo consumidor, que é inquieto e deseja novas experiências quase que a todo instante. Ao mesmo tempo, temos o consumidor acostumado com velhas práticas ou mais analógico. Como agradar a ambos?
Juliana Domingues, secretária nacional do consumidor, destacou que o papel do regulador é justamente olhar para esses dois mundos. “Temos o consumidor que nasceu ou migrou para o digital, mas precisamos pensar em todos os perfis. Precisamos adaptar a regulação para que atenda esse novo perfil, mas que não esqueça aqueles dos outros, que são analógicos. Somos um País com diferenças regionais e sociais”, explica.
Elisa Leonel, superintendente de relações com o consumidor da Anatel, a agência reguladora do setor de telecomunicações, destacou os avanços das leis no cumprimento nas legislações específicas do setor de telecomunicações, porém fez ressalvas quanto aos desafios.
“A sensação que eu tenho, e é a mesma da Anatel, é que nem todos os benefícios trazidos pelas tecnologias e pela inovação estão apropriados para o consumidor, isso do ponto de vista de processos de atendimento das empresas. Consumidor quer um processo mais efetivo e simples. Essa simplicidade não pode estar apenas nos pacotes e serviços que as empresas. As empresas precisam avançar em como a omnicanalidade se materializa na simplicidade dos processos”, comentou.
Corrida pela omnicanalidade
A regulação consumerista, curiosamente, também passou por um momento excepcional na pandemia. Leis foram aprovadas às pressas e suspenderam alguns direitos dos consumidores. Um exemplo foi a norma que criou uma regra de devolução de dinheiro do consumidor para a aviação civil.
Isso também aconteceu com o decreto do SAC. Uma portaria da Senacon suspendeu as multas e sanções pelo descumprimento da regra de atendimento telefônico em até minuto. Isso ocorreu por causa do fechamento de alguns call center e, consequentemente, um número de menor de atendentes de telemarketing.
A medida foi importante para que as empresas pudessem organizar a casa para atender o cliente. O Itaú Unibanco, que vinha de um intenso processo de transformação digital antes da pandemia, viu os seus canais digitais explodirem no último ano.
O ITI, banco digital do Grupo Itaú Unibanco, por exemplo, chegou a marca de 6 milhões de novos clientes. “Mais da metade foram abertos somente em 2021”, lembra Leila Melo, diretora-executiva responsável pelas áreas jurídica e de relações corporativas do banco.
Esse mesmo impacto nos canais digitais também foi sentido em todo o grupo Itaú Unibanco. “Foi algo impressionantes para nós. 15 milhões de correntistas, que representa 60% da nossa base de clientes, já são considerados puramente usuários de canais digitais em 2021. Isso é um aumento bastante expressivo quando comparamos os anos de 2019 e 2020”, explica.
Esse processo de migração para o canal digital quase do dia para noite também ocorreu nas empresas da Via Varejo, grupo que congrega marcas como Casas Bahia e Ponto (antiga Ponto Frio) e outras.
Segundo Edinelson Santos, diretor de atendimento ao cliente Via Varejo, a empresa precisou aumentar a capacidade do telefone na pandemia e um dos motivos é até curioso: a empresa precisou treinar o atendimento para ajudar o consumidor a utilizar os canais digitais. “Tudo virou online. Então, não tinha mais como falar com o gerente da loja. Então, entendemos que o cliente precisava ligar na central e, assim, falar com alguém’, lembra.
Essa massificação de uso dos canais digitais logo apresentaram outro desafio que o e-commmerce conhece bem: a logística. “Os nossos transportadores não suportavam a carga de produtos, pois, do dia para a noite, eu passei a entregar tudo o que eu não entregava, caso da batedeira e liquidificador. Esse período de adaptação que foi até julho. Depois estabilizamos todos os canais.”
No Carrefour, assim como outros varejistas de supermercados, as portas não fecharam durante a pandemia, mas isso não significa que surgiram desafios inéditos para a companhia. A empresa fez ajustes nos canais de relacionamento: ela suspendeu as atividades do canal de vendas de produtos não alimentares e entrou no lugar o canal de 60 +.
“Criamos um canal de televendas de food para 60 +, para o idoso. Foi uma experiência muito importante, pois atendemos uma parcela da população mais vulnerável (ao vírus). Nós preparamos a nossa equipe para atender os idosos por um período bastante longo. Foi uma experiência incrível”, recorda Fabio Bittencourt, diretor de customer service do Grupo Carrefour Brasil.
Ao mesmo tempo, o varejista não deixou de lado o consumidor digital, algo que a empresa também estava de olho antes da pandemia. A estrela acabou sendo o WhatsApp. “O nosso WhatsApp estava pronto desde 2019. No primeiro ano tivemos 2 milhões de atendimentos. Em 2020 foram 10 milhões de atendimento no ano. Foi um crescimento expressivo, muito relacionado funcionalidade que colocamos lá: status do pedido de e-commerce, a segunda via de fatura do banco Carrefour, a oferta das lojas e outras coisas”, disse.
Desafios da regulação
Em meio a discussão, Meir fez provocações aos painelistas sobre o formato de regulação e até se eles realmente contribuíam para a boa experiência do cliente.
Juliana defendeu a ideia de uma regulação mínima para os setores regulados. Dessa forma, a partir da regra básica, as agências reguladoras poderiam atuar com normas específicas e ajustadas à realidades de cada empresa ou setor.
“É o que está sendo estabelecido, por exemplo, com o novo decreto do SAC. A partir daí cabe a cada empresa ou fornecedor estabelecer parâmetros que vão conseguir cativar melhor esse fornecedor e, assim, maximizar a experiência desse consumidor.
Na Anatel, os últimos anos foram de novas experimentações regulatórias, algumas delas já bem-sucedidas e até curiosas. Uma delas, segundo Elisa, foi a exigência de um atendimento pela internet em 2014 para o setor de telecomunicações. Sim, foi preciso pedir que o fornecedor de internet atendesse por esse meio. “Parece um contrassenso que um regulador precise dizer para uma empresa de telecomunicações ‘olha, abra um atendimento pela internet. Mas foi assim que aconteceu”, disse.
Outra medida adotada pela Anatel foi a chamada regulação responsiva. “É uma regulação baseada em incentivos. As empresas se alinham à regulação e, dessa forma, damos incentivos que aprimorem a imagem da companhia no mercado. Outra iniciativa que precisamos avançar é uma discussão sobre a adoção de boas práticas corporativas nesse mundo veloz, cheio de avanços e cada vez mais complexo”, disse.
Para Fábio, a regulamentação é um norte sobre o que as empresas devem fazer. O resto é com a companhia. “O principal ponto é fazer além da regulamentação. É algo extremamente necessário por uma questão de posicionamento estratégico e competitividade. Aqui, costumamos brincar: ‘Você quer ter razão ou ser feliz? Se quer ter razão, vai gerar o litígio e esse não é o caminho. Queremos ser felizes. Queremos fidelizar e gerar a recorrência. Temos uma estatística muito interessante em que 80% dos nossos elogios partiram de uma reclamação. Toda relação de confiança parte de uma fragilidade”, explica.
“Precisamos criar incentivos, sim, e para os dois lados. Temos que fazer políticas públicas com base em evidências. E nós vimos um aumento durante a pandemia de 70% das reclamações com relação ao SAC das empresas. No setor financeiro, essa percepção foi de 138% de aumento da insatisfação”, complementou Juliana, da Senacon.
Para o Itaú, o consumidor precisa continuar esse processo de compreensão de seus direitos e deveres. Dessa forma, ele entende o que está envolvido em uma relação de consumo e todos ganham, inclusive com menos queixas e litigiosidade. “A gente quer que o consumidor tenha cada vez mais consciência e possa discutir com a empresa sobre serviços que ele está utilizando de uma maneira direta, fazendo valer os seus direitos. Os canais digitais e a omnicanalidade podem ajudar nesse processo”, disse.
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