Cometi uma heresia na minha juventude: estudei filosofia. Podia ter fumado maconha, roubado a namorada do meu melhor amigo, não feito as lições de casa, subtraído dinheiro da carteira do meu pai, mas não fiz nada disso. Escolhi um caminho muito pior: prestei vestibular na USP para filosofia e fui aprovado.
E durante nove anos aprendi ideias para lá de esdrúxulas: como os gregos antigos pensaram o tema da democracia; o tema da virtude em Aristóteles; o esforço de Santo Agostinho para compreender a origem do mal no mundo; a construção da dúvida e da certeza na base do sistema do conhecimento cartesiano; o direito divino dos reis protagonizado por Jean Bodin; o pacto para formação da sociedade civil e do Estado nos filósofos do contratualismo moderno; as condições do pensamento para Kant; a relação entre essência e existência em Sartre e Heidegger. Tudo muito perigoso e ao mesmo tempo desprezível. Na verdade: dispensável.
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Pergunto a mim mesmo: por que estudei esse monte de bobagens? O que isso trouxe para minha vida? Com certeza, nada. Aliás, por que tantos filósofos estudam o nada? Escrever um livro sobre o Ser e o Nada? Acho que eles não tinham o que fazer e ficavam inventando coisas. E encheram a minha mente de ideias do demônio.
Ainda bem que agora só estudo o sistema binário: é 0 ou 1. Isso me basta. E, como não precisamos mais pensar em outros sistemas, acabamos por permitir que o próprio sistema binário substituísse nossa inteligência natural pela inteligência artificial. Ufa!: estamos livres de ficar pensando sobre o sentido da vida. E agora podemos fazer o que importa: um ofício que gere renda para nossa família e a sociedade. Que bom!
Nas minhas atividades de advogado e militante de causas sociais, a filosofia nunca serviu para nada. Na minha vida em família, a filosofia gerou muitos mal-estares, foi um estorvo. Toda vez que tive de pensar em estratégias de atuação profissional, de como me comportar perante os outros, nos valores que deveriam nortear minha ação, a filosofia me desvirtuava do bom caminho. Mas o pior da filosofia é ter um ramo chamado ética. Coisa mais chata e inadequada para refletir. Para que serve tudo isso? Vejam que pergunta mais idiota a qual não precisamos mais responder: será que a tecnologia está avançando mais rápido do que o senso de responsabilidade da humanidade? O sistema binário 0 ou 1 pode ignorar esta pergunta. Ainda bem.
Acho que Heidegger tinha razão quando escreveu: quem pensa profundamente, deve errar profundamente. Vamos suplantar o tempo perdido e parar de pensar profundamente e errar profundamente.
Chegou a era do superficial. De recuperar o tempo perdido.
* Marcelo Sodré é advogado e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) em São Paulo