Nos últimos anos, um pequeno gadget chamado smart box ou TV box (aparelho que converte qualquer televisor em uma smart TV) se tornou uma fenômeno de consumo no Brasil. Infelizmente, um dos motivos para o estrondoso sucesso está relacionado a uma prática ilegal, segundo a lei brasileira: a reprodução gratuita (e ilegal) de filmes, séries e outros programas oferecidos apenas para assinantes das operadoras de TV e dos streamings. A prática ganhou até nome: Pirataria da TV Paga.
O número de brasileiros que utiliza o aparelho já representa o dobro dos assinantes de todas operadoras de TV em atividade no País. De acordo com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), existem aproximadamente 15 milhões de assinantes contra 33 milhões de brasileiros que consomem conteúdo de TV por assinatura por um ou mais meios piratas, segundo dados da Mobile Time/Opinion Box.
A Consumidor Moderno procurou entender esse fenômeno e o resultado é estarrecedor sobre os mais diferentes pontos de vista, inclusive para o próprio consumidor, que acredita estar levando vantagem com a aquisição do produto.
Universo
O número de apreensões do smart voz este ano revela a dimensão da penetração do produto no Brasil. Somente em 2021, o total já é superior a somatória registrada no período de 2018 a 2020.
“Temos visto um crescimento no número de apreensões. Em 2018, o volume de equipamentos apreendidos foi de 200 mil produtos, um número parecido com o resultado de 2019. Já no ano passado tivemos mais de 540 mil produtos apreendidos. Em 2021, o grande salto: até agora, no meio do ano, já temos mais de 1,2 milhão. Ou seja, já superou a soma de todos os anos anteriores em termos de apreensão”, explica Wilson Diniz Wellisch, superintendente de Fiscalização da Anatel.
De acordo com a Anatel, existem aproximadamente 15 milhões de assinantes desse serviço no País contra 33 milhões de brasileiros que consomem conteúdo de TV por assinatura pirata
A maior parte dos aparelhos vendida no País é produzida na China e entra em solo brasileiro a partir dos portos marítimos, muito embora existam casos da entrada do produto via Paraguai.
Somente no Porto do Rio de Janeiro, até 2020, foram apreendidos aproximadamente 1 milhão de TV Boxes, o que causou um prejuízo de R$ 470 milhões para os criminosos que exploram essa ilegalidade.
Distribuição
Para o consumidor, o custo (o aparelho custa a partir de R$ 150 e mais a internet) é um dos atrativo, mas não é o único fator que explica a popularidade do Smart Box. O fácil acesso também também foi decisivo para o sucesso do aparelho, que até pouco era facilmente encontrado nos principais e-commerces e marketplaces em atividade no País.
Diante da venda indiscriminada do gadget, o poder público precisou agir. A ação mais recente foi adotada pela Anatel no mês passando, quando ela notificou 12 dos mais populares e-commerces em atividade no País.
Na carta, a Anatel exigiu a adoção de medidas para minimizar o risco de disponibilização em suas plataformas de produtos de telecomunicações não homologados. Além disso, a agência sugeriu que as lojas proibissem a venda desses produtos, entre outras exigências.
Em 2020, houve a apreensão de mais de 540 mil produtos apreendidos. Em 2021, foram mais mais de 1,2 milhão
“Muitas plataformas diziam que eram apenas vitrines e não participavam do ato de comercializar. Na verdade, segundo as plataformas, elas apenas aproximavam vendedor e comprador. Essa lógica já não cola mais. Pareceres jurídicos e até entendimentos do poder público afirmam que esses marketplaces tem atuado na cadeia de comercialização, fazendo estocagem, logística e muito mais. No mês passado demos um ultimato a essas empresas. A partir de agora, vamos atuar de forma um pouco mais repressiva. A fiscalização da Anatel vai começar atuar de forma a não permitir que esse produto seja vendido dentro dessas plataformas”, explica Wilson Diniz Wellisch, superintendente de Fiscalização da Anatel.
Muita empresa não gostou da pressão do poder sobre o é vendido nos marketplaces, mas o fato é que já existem alguns bons resultados da atuação do poder público. Em 2020, houve a retirada de 28 mil anúncios de diferem TV Boxes e os seus respectivos banimentos dos marketplaces. As lojas também teriam sido excluídas.
No entanto, nem mesmo toda essa pressão tem intimidado os grupos que se beneficiam dessa ilegalidade, que continua atuando e alguns deles são bem conhecidos dos brasileiros: os milicianos.
Crime organizado
Seja no filme ou série de TV, muita gente já viu a associação da oferta de internet ou TV por assinatura clandestina via cabo, o chamado “gatonet”, associado a milicianos. Existem evidências de que os mesmos criminosos que ofereciam a TV clandestina via cabo também estariam envolvidos na oferta de TV Box em algumas cidades, como é o caso do Rio de Janeiro.
De acordo com a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), as investigações mostram que as quadrilhas agem de duas maneiras: ou elas atuam em um algum momento da oferta da Pirataria da TV Paga, caso do furto de sinal, ou dominam toda a cadeia de produção dessa ilegalidade.
No caso do furto de sinal, a prática funciona da seguinte maneira: o conteúdo furtado é direcionado para um satélite ou uma nuvem na internet e é disponibilizado ao usuário final através de sites na internet, listas ilegais de IPTV, aplicativos ou TV boxes.
Uma das quadrilhas investigadas em São Paulo, por exemplo, movimentou R$ 94 milhões por ano para operar um site que vendia ilegalmente assinaturas de pacotes de TV. “O financiamento dessa atividade pode ocorrer por publicidade, por pagamento de assinatura para liberação do conteúdo, ou venda de equipamentos no caso das TV boxes”, informou a pasta em nota.
No caso da oferta do smart box, a secretaria informa que a venda do produto de smart boxes tem o envolvimento de milicianos do Rio de Janeiro, os mesmo que até pouco tempo ofereciam o “gatonet” via cabo. No entanto, segundo a pasta, há casos de milicianos que também furtam o sinal.
Prejuízo para consumidores
Para o consumidor, o problema vai muito além do financiamento de uma atividade ligada ao crime organizado. Quem financia essa prática age ilegalmente e corre o risco de ser preso com base no artigo 184 do Código Penal, que cita a prática da pirataria e prevê pena de 3 meses a 1 ano ou multa.
Uma das quadrilhas investigadas movimentou R$ 94 milhões por ano
Além disso, o consumidor corre o risco de ameaças invisíveis a partir do Smart Box. De acordo com a Anatel, o uso do aparelho facilita a abertura da chamada porta dos fundos (backdoors) ou brecha de uma rede caseira de internet, o que poderia facilitar um ataque hacker voltado para o furto de dados pessoais e senhas de bancos, além de permitir o controle de aparelhos conectados à internet.
“Um exemplo de risco é a questão de abrir uma backdoor na sua rede. Mas existem outros. Tem ainda a mineração de criptomoeda. A pessoa rouba a sua energia para fazer mineração de criptomoeda”, disse Diniz Wellisch.
Prejuízo para empresas
Outro prejudicado com a pirataria são as empresas de telecomunicações, que oferecem o sinal de TV furtado. A estimativa atual da Associação Brasileira de Televisão por Assinatura (ABTA), com base em dados da Anatel e do IBGE, é de que o impacto financeiro da pirataria de TV por assinatura é de R$ 15,5 bilhões por ano. Com isso, até o governo perde: dos R$ 15 bi, R$ 2 bilhões seriam de impostos que os governos deixam de arrecadar.
“Os principais ofendidos são os usuários, mas logo em seguida são os prestadores de serviços. Os serviços de TV por assinatura são altamente impactados em termos de receita com essas TVs boxes, que replicam nos seus aplicativos as programações lineares das operadoras e os conteúdos dessas operadoras. Você acaba tornando todo o negócio (de TV por assinatura) inviável”, afirma Diniz Wellisch, da Anatel.
Campanha na TV
Para tentar conscientizar a população sobre os riscos da pirataria da TV por Assinatura, a ABTA lançou recentemente uma campanha contra a crescente prática criminosa.
O impacto financeiro da pirataria de TV por assinatura é de R$ 15,5 bilhões por ano
“O combate à pirataria se dá pela soma de esforços entre as operações contra crime e as campanhas de conscientização do público. Por um lado, o poder público, com apoio da indústria, enfrenta o crime organizado, que ameaça milhares de empregos, de artistas, jornalistas, produtores e técnicos do setor audiovisual. Por outro, os cidadãos conscientes ajudam a mudar os hábitos de quem pratica a pirataria. A nova campanha da ABTA vem para somar forças na defesa dos direitos de todos os que trabalham na indústria da TV por assinatura e que levam cultura, informação e entretenimento a milhões de pessoas”, afirma Oscar Simões, presidente da ABTA.
Com textos de Carlos Eduardo Vasconcellos
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