Imagine duas pessoas conversando sobre um carro e, então, uma delas decide procurar informações sobre o veículo na internet. Em segundos, acontece algo quase mágico: surgem publicidades sobre o tal bem em sites de notícias, Youtube e nas redes sociais. Eles realmente estão em todo o lugar.
Se a mesma pessoa continuar a navegação na web, as surpresas podem ser ainda maiores. É possível que ela se depare com publicidades que mostrem a localização de uma concessionária de veículos perto de casa ou, curiosamente, haverá o anúncio mostrando o valor da mensalidade do carro e, pasme, ele é apropriada para o seu bolso desse consumidor.
Evidentemente que não há mágica nisso tudo, mas apenas computação. Voz, localização e até dados sobre a renda mensal são condensados e, por fim, usados para realizar uma micro segmentação de publicidade para o consumidor final. E isso não tem nada de errado. O problema é quando essa segmentação cruza a linha tênue com a segregação e o resultado pode ser imprevisivelmente triste.
Em 2016, por exemplo, o Facebook foi alvo de uma reportagem do site ProPublica, que apontou que a ferramenta digital de publicidade permitiria incluir ou excluir etnias ou até mesmo pessoas de diferentes sexos de receberem anúncios.
Nos Estados Unidos, esse e outros exemplos de desvio na micro segmentação tem incomodado – e muito – um número crescente pessoas e entidades da sociedade civil. Parte dele se juntou e formou uma coalização com 35 associações que se autodenominou “Ban Surveillance Advertising” (algo como Proibir a Marketing de Vigilância) que, agora, quere redefinir a maneira como é feita a publicidade digital. E isso já incomoda as big techs.
O que é marketing de vigilância?
Nesta semana, a coalização deu o seu passo mais audacioso: publicou uma carta na imprensa contra o marketing de vigilância e apontou o dedo na direção das big techs. A carta é assinada por Avaaz (rede para mobilização social global através da Internet), Center for Humane Technology, The Social Dilemma, Liberation in a Generation, entre outras.
Nesse manifesto, eles definem o marketing ou publicidade de vigilância como sendo uma “prática de rastrear extensivamente e traçar perfis de indivíduos e grupos e, em seguida, micro segmentar anúncios com base no histórico comportamental, relacionamentos e identidade”.
“Essas empresas dominantes selecionam o conteúdo que cada pessoa vê em suas plataformas usando esses dossiês – não apenas os anúncios, mas feeds de notícias, recomendações, tendências e assim por diante – para manter cada usuário viciado, para que possam receber mais anúncios e extrair mais dados”, afirma um trecho da carta.
A carta cita também a importância do engajamento dos usuários ao redor de assuntos como conspiração e o ódio para o negócio dessas empresas. “As big techs amplificam o ódio, atividades ilegais e conspiração porque é isso que gera mais engajamento e lucro. Suas próprias ferramentas algorítmicas impulsionaram tudo, desde grupos de supremacia branca e negação do Holocausto até fraudes do COVID-19, opióides falsificados e curas falsas de câncer”, afirma.
Outra ação do grupo foi lançar um site com um dossiê sobre os efeitos nocivos do tratamento de dados e que justificariam como essas empresas atuam como:
- Máquinas de desinformação;
- Uma ameaça à saúde pública;
- Que seriam veículos de discriminação;
- Que eles ajudam e encorajam extremistas violentos e;
- Eles vendem informações pessoais confidenciais, entre outros problemas.
Abaixo, o vídeo da campanha da coalizão:
Google muda o tratamento de dados
Coincidência ou não, a divulgação da carta da coalização acontece em um momento histórico para o Google e que tem relação direta com o discurso da coalização. Há 20 dias, a empresa anunciou justamente uma significativa na maneira como deverá tratar os dados de usuários.
Em suma, o Google afirma que não vai mais usar o histórico individual de navegação dos internautas para embasar o oferecimento de seus anúncios. Segundo a big tech, a medida entrará em vigor já em abril.
A partir do próximo mês, para manter o lucro com os anúncios publicitários, a empresa passará a agrupar usuários com comportamentos similares para “esconder” as pessoas “no meio da multidão” e, portanto, aumentar a privacidade.
Publicidade: internet superou televisão
Por enquanto, é difícil avaliar se a mudança poderá diminuir a relevância da coalização e se a medida poderá diminuir o tamanho da força do Google. O fato é tanto a empresa de Mountain View quanto o Facebook vem acumulando seguidos crescimentos de faturamento com a publicidade digital, elevando ainda mais o seu poder no ambiente digital.
Um estudo chamado Global Entertainment and Media Outlool, da PwC, que analisa a receita global do setor de mídia e entretenimento, mostra que os gastos de publicidade na internet superaram os investimentos na TV pela primeira vez na história em 2020.
Os números mostram que os gastos de publicidade na internet passaram de US$ 154 bilhões em 2015 para US$ 260 bilhões em 2020. Esse desempenho foi puxado pelos mercados dos Estados Unidos, China e Inglaterra. Por outro lado, o segmento de publicidade na TV deverá movimentar US$ 210 bilhões, 26% a mais do que em 2015.
Outro estudo, desta vez produzido pelo GroupM, agência de mídia global, reforça ainda mais a percepção sobre a força das big techs: juntas, as duas empresas possuem uma concentração de 60% de toda a publicidade digital em 2020. Com a Amazon, esse percentual chega a impressionantes 70%. E elas não param de crescer.
O mesmo levantamento mostra a receita de anúncios do Facebook subiu 22% no terceiro trimestre de 2020 na comparação com o ano anterior. Considerando o mesmo período, o Google registrou um crescimento de 10% e o da Amazon foi ainda mais impressionante: 51%.
Considerando todos os movimentos regulatórios nos EUA, será que teremos um Google ou Facebook fracionado em outras empresas, com um tratamento de dados mais transparente e menos invasivo em sua publicidade? O debate sobre o papel dessas empresas continua no próximo episódio.
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