É difícil encontrar um jurista que não tenha uma opinião pessimista quando o assunto é o aumento no número de processos judiciais (a tal judicialização) que tenha o carimbo do novo coronavírus. A COVID-19 seria a justificativa mais comum para todo o tipo de problema em sociedade que tivemos no último ano, inclusive quando o assunto é a relação de consumo.
No fim do ano passado, uma pesquisa feita pela Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) mostrou exatamente o impacto do vírus no cotidiano do Tribunal de Justiça de São Paulo. Segundo a entidade, entre março e dezembro do ano passado, a palavra “Covid-19” aparece pelo menos uma vez em 30.766 processos judiciais nos tribunais paulistas.
A indenização por dano moral, algo que normalmente é associado a um processo de consumo, ocupa a segunda posição no estudo, com 1.595 processos. Além disso, a pesquisa mostra que o setor aéreo, um dos mais impactados pela pandemia, registrou 738 ações.
Ou seja, nunca a solução amigável extrajudicial foi tão importante para o judiciário quanto agora.
Até por esse motivo, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) colocou em discussão a possibilidade de adoção de modelos de autocomposição entre empresas e clientes, o que poderia até mesmo ocorrer dentro da plataforma Consumidor.gov.br. Essa negociação poderia ocorrer por meio da conciliação, mediação ou até mesmo arbitragem.
O debate ainda está em aberto, mas o caminho parece mesmo ser o digital. Para falar sobre o assunto, a Consumidor Moderno conversou com Werson Rêgo, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e defensor de meios de autocomposição, entre outros motivos, para as ações consumeristas. Veja a entrevista:
Consumidor Moderno – O Conselho Nacional de Defesa do Consumidor cogita criar meios de solução de conflitos extrajudiciais, dentre eles a arbitragem nas relações de consumo. O que pensa sobre o tema?
Werson Rego – O Poder Judiciário finalizou o ano de 2019 com mais de 77 milhões de processos em tramitação, o que revela que a litigiosidade no Brasil permanece muito alta, sem precedentes nos sistemas de justiça do mundo civilizado.
Nada obstante isso, em 2019, apenas 12,5% de processos foram solucionados através das vias conciliatórias, a indicar que a cultura da composição, da resolução de conflitos através de métodos autocompositivos ainda tem muito a evoluir.
Para além do amadurecimento das relações intersubjetivas, conciliação, mediação e arbitragem são ferramentas importantes e necessárias, pois, contribuem para a diminuição da judicialização no Brasil.
CM – Países como a Argentina, EUA e Portugal possuem um modelo de arbitragem de consumo. Olhando para todos esses exemplos, qual seria o modelo ideal para nós? Ou nenhum deles seria aplicável para nós e, assim, precisaríamos construir um novo modelo?
Werson Rego – A arbitragem, enquanto método alternativo para a resolução de conflitos, foi instituída no Direito brasileiro pela Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996. A possibilidade de aplicação aos contratos de consumo está prevista no art. 1.º da Lei 13.129/2015, mas tal disposição fora vetada pelo Presidente da República em exercício, Michel Temer, ao argumento de antinomia com normas jurídicas do Código de Defesa do Consumidor, notadamente o art. 51, VII.
No direito comparado, o instituto da arbitragem na solução de conflitos de consumo é amplamente utilizado nos EUA, no Reino Unido, em Portugal, na Espanha, na Argentina e em diversos outros países, apesar de críticas pontuais, aqui e acolá.
A nossa Constituição da República visualiza o consumidor brasileiro como um sujeito especial de direitos que, em razão de sua vulnerabilidade no mercado de consumo, deve ser especialmente protegido pelo Estado.
Por isso, há quem sustente a total impossibilidade de previsão de arbitragem para a resolução de conflitos de consumo, posição com a qual, respeitosamente, não concordo. O sistema jurídico brasileiro não autoriza a imposição ao consumidor da arbitragem compulsória, mas, de forma alguma, não autorizaria a utilização desta via de resolução de conflito por iniciativa e provocação do próprio consumidor. Assim, penso eu, é, sim, bastante possível a construção de um modelo que se adeque ao sistema constitucional e infraconstitucional de proteção e defesa do consumidor.
CM – Os grupos contrários a arbitragem dizem que o modelo pode significar o fim da defesa do consumidor. Explico: eles afirmam que a arbitragem, em muitos casos, é uma negociação privada e sigilosa. Nesse caso, pessoas que estudam o direito do consumidor não teriam acesso ao desfecho da negociação entre os dois lados e, consequentemente, não haveria jurisprudência na defesa do consumidor. O que o senhor acha dessa avaliação?
Wêrson Rego – O procedimento arbitral é, sem dúvida, fruto da autonomia da vontade das partes contratantes e, portanto, tem na boa-fé dos particulares um dos seus princípios estruturantes. Outro princípio muito importante a considerar é o da isonomia entre as partes, a paridade de forças e a igualdade de armas. É absoluta a presunção de vulnerabilidade do consumidor e, atento a isso, qualquer proposta de implementação da arbitragem na solução de conflitos de consumo precisa respeitar essas peculiaridades.
Agora, assumindo tratar-se de uma via de acesso voluntário, o objetivo maior deve ser a composição/resolução célere e eficiente dos conflitos de interesses ali expostos e, não necessariamente, a formação de uma “doutrina” ou “jurisprudência” uniformes.
Sem embargo, é sempre possível a busca de termos médios, de pontos de equilíbrio entre posições extremadas. Desta forma, como mero exercício, poder-se-ia estabelecer a publicidade das decisões como regra, que poderia ser afastada por requerimento expresso de alguma das partes.
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