É quase possível ouvir as notas de um piano clássico embalando os lentos passos de uma senhora na escadaria de um aconchegante imóvel no Alto de Pinheiros. A trilha sonora e uma ambientação levemente enegrecida, quase uma cena de um filme noir, pairam sobre a sala de estar onde, daqui a pouco, a mulher que ilustra essa reportagem concederá uma rara entrevista.
Um cumprimento e ela, aos poucos, revela sua voz. A serenidade na fala e os passos cuidadosos são características quase irresistíveis para que um jornalista se apresse em descrever a entrevistada como uma frágil octogenária ítalo-brasileira, não fosse por um detalhe: um denso livro que repousa nos braços de sua verdadeira genitora.
As impressões iniciais, então, desaparecem diante do nome de Ada Pellegrini Grinover. Ela é a dona da casa, a senhora de passos lentos e, sobretudo, uma pessoa pouco disposta a falar das fotografias espalhadas na sala – um espaço, que, aliás, revela o gosto por obras de arte e livros em italiano, francês e português. Ela prefere narrar alguns dos feitos públicos quando era procuradora de Justiça ou quando declamava leis civis brasileiras como professora na USP ao lado de nomes como Miguel Reale, que, assim como ela, é apontado como um dos titãs do direito do País.
Em um dos seus braços, o rebento é nada menos que o Código de Defesa do Consumidor, a sua obra-prima. “O CDC tem vários pais, mas apenas uma genitora”, diz Ada Pellegrini, abrindo um tímido sorriso.
A comissão: o início do CDC
Ada, como ela mesma já contou, é uma das coautoras do texto que deu origem ao CDC, um dos mais exaltados conjuntos de leis brasileiras e seguramente um dos mais modernos do mundo. Ao folhear o compêndio pronto, de capa dura, cheio de parágrafos e princípios, é difícil enxergar algo que seja diferente de um complexo e formal conjunto de leis. Mas há. E no ano em que o código completa 25 anos, histórias não faltam para essa lei.
A mulher que verdadeiramente merece o rótulo de “doutora” é pródiga em narrar os fatos que cercam a história do CDC, um talento que se explica pelo fato dela ser uma imortal da Academia Paulista de Letras. E foi assim – embalada pelas tragadas de um cigarro eletrônico –, que ela lembrou de janeiro de 1988, ou seja, mês e ano da formação do grupo responsável pelo desenvolvimento do texto que mais tarde daria origem ao CDC como o conhecemos.
Segundo Ada, o ministro da Justiça na época, Paulo Brossard, estava decidido a mudar a não balanceada relação de consumo no país. Para isso, formou um grupo de notáveis juristas que mais tarde se chamaria Conselho Nacional de Defesa do Consumidor presidido pelo jurista Flávio Flores da Cunha Bierrenbach, Ada (a coordenadora), Daniel Roberto Fink, José Geraldo Brito Filomeno, Kazuo Watanabe e Zelmo Denari. Todos coautores do CDC.
“Tudo aconteceu antes da Constituição Federal. Naquele momento, já tínhamos o conhecimento de que o direito seria incluído na Carta Magna. Mas começamos do zero. Direito do consumidor, o desequilíbrio das relações de consumo, conceitos de consumidor e fornecedor, isso tudo não havia absolutamente nada”, lembra.
Aliás, não havia nada mesmo sobre melhores práticas do consumo, muito menos uma ambição popular por um conjunto de leis sobre o tema. Ada lembra que o CDC não emanou do povo, mas de órgãos como o Ministério Público e o próprio governo. “O povo não tinha a mínima ideia. A população precisou ser esclarecida. Se me perguntarem se o ovo veio antes da galinha, eu diria que ele veio do poder público, o Congresso e o executivo. Então, realmente, é uma lei que veio de cima”, disse.
As bases do CDC: hipossuficiência e inversão do ônus da prova
Os primeiros estudos, os debates, o exercício do contraditório e os primeiros rascunhos foram feitos na sala de jantar da residência de Ada. Ali, não há indícios perceptíveis de que a história das relações de consumo foi rascunhada naquele cômodo. As lembranças estão vivas na memória da própria Ada.
À época, ela lembra que salgadinhos e taças de vinho embalaram os estudos do grupo sobre doutrinas e códigos de origens alemã e francesa, duas das principais fontes do nosso CDC.
A sala onde surgiram os primeiros princípios e direitos do Código de Defesa do ConsumidorO primeiro ponto discutido foram os princípios, algo que rapidamente foi reconhecido: o consumidor brasileiro (assim como em outros países) era o mais fraco da relação de consumo e precisava de um amparo jurídico. “A hipossuficiência (reconhecimento do consumidor como o lado mais fraco) a gente colocou desde o começo, pois já existia jurisprudência do direito do trabalho. Não escandalizou muito, não. Olha… passou com muita facilidade. Se fosse hoje, não passava. A única coisa que as pessoas implicaram foi a inversão do ônus da prova. Era uma questão secundária, mas achavam que aquilo era uma coisa perigosíssima. Para nós, o mais importante a responsabilidade objetiva sobre a qual eles deveriam, sim, ter brigado. Era responsabilidade sem culpa.”
Surgiam naquele momento a hipossuficiência e a inversão do ônus. A partir deles, o Código se materializou em artigos e parágrafos. E em 1989, um ano depois de iniciado os trabalhos, o CDC estava pronto para ir ao Congresso.
Quem é o autor?
O texto original foi publicado no Diário Oficial em 1989 e formalizou o desembarque em Brasília. Ocorre que o texto rapidamente foi alvo da cobiça parlamentar. Assim, surgiram “uns quatro ou cinco” projetos de leis que lembravam o anteprojeto de Ada e seus colegas. Aliás, cópia seria a palavra apropriada para definir as propostas apresentadas no Câmara, segundo Ada.
“Teve uma história curiosa. O Kazuo é um homem tranquilo e que dificilmente ficava irritado. Na época, antes da formal apresentação do projeto, a comissão recebia o apoio do governo do estado para a produção do CDC. Foi então que um deputado estadual apresentou um texto idêntico ao nosso na Assembleia Legislativa de São Paulo. Note o absurdo: ele queria criar um CDC estadual. Naquele tempo, ninguém sabia do texto, pois ela estava em produção, exceto… um secretário estadual. Quando descobriu, Kazuo chamou-o de ‘moleque’ e de coisa muito pior'”, lembra, aos risos, Ada.
As cópias foram desmascaradas, mas um havia um projeto autoral e bom. Era o do então deputado federal e hoje governador de São Paulo, Geraldo Alckmin. Na verdade, os textos foram produzidos pela assessoria jurídica do parlamenta na época, que era o jurista Nelson Nery e o hoje ministro do STJ, Herman Benjamim. “Era um projeto bom. Claro, tinha alguns princípios nossos, mas era original. Então, ele (Alckmin) nos chamou e fizemos uma proposta em conjunto a partir do nosso texto. Do Alckmin aproveitamos, sem dúvida, a responsabilidade objetiva.”
Lobbie e a aprovação
Após atender os pedidos de Alckmin e outros políticos, a proposta com “80% do texto da comissão”, segundo Ada, foi à votação. No caminho, mais alguns obstáculos, como o lobbie do setor empresarial de uma maneira geral. Mesmo diante da pressão, o CDC alterado (mas que manteve o fundamento de Ada e da comissão) foi aprovado por unanimidade no Congresso em 60 dias. “Depois ocorreram alguns vetos do (Fernando) Collor, totalmente idiotas, que não modificaram nada. Um dos vetos era uma espécie de mandado de segurança contra entes privados, contra empresas. Mas tudo bem. A antecipação de tutela serve para isso também”, disse.
O resto da história é a pura aplicação da lei na sociedade. E essa já não é uma narrativa que compete a jurista, segundo a própria. Assim, após duas horas, ela decretou o fim da entrevista. Gentilmente ela agradeceu a lembrança, enrolou o acessório no pescoço e retornou ao seu quarto exatamente da mesma maneira que chegou: em passos lentos e com o filho embalado em um dos seus protetores braços. Afinal, mãe é quem cuida.
Esta é uma singela homenagem às mulheres por meio de Ada Pellegrini, a pessoa que sintetiza o que é ser mulher e especialista em consumidores.
Ela faleceu no dia 13 de julho de 2017 aos 84 anos. Ao longo da sua vida, além do CDC, ela participou da reforma do Código de Processo Penal, foi coautora da Lei de Interceptações Telefônicas, da Lei de Ação Civil Pública e da Lei do Mandado de Segurança e fez pesquisas sobre meios alternativos de solução de controvérsias. Texto originalmente publicado na edição 206 da revista Consumidor Moderno