A aprovação do Código de Defesa do Consumidor do município de São Paulo foi duramente criticada por especialistas no assunto, que afirmam que a lei é inconstitucional e não traz novidades para o direito do consumidor. Mais do que isso, ela também incorpora um detalhe: ela cita uma lei que sequer é válida no País no momento: a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
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Uma das vozes contrárias é justamente a do Secretário Nacional do Consumidor, Luciano Benetti Timm. Segundo ele, existem algumas dúvidas sobre a constitucionalidade do CDC do município, lei número 17.109/2019. “Tenho dúvidas sobre constitucionalidade; vamos examinar isso. Não é bom quando defesa do consumidor se confunde com política. Quando digo política, refiro-me quando fica desvinculado a uma política pública”, explicou.
Cláudia Silvano, diretora do Procon Paraná e ex-presidente da entidade ProconsBrasil, também fez críticas ao código de São Paulo. Ela, uma experiente conhecedora do CDC, entende que a norma municipal é inconstitucional com base no artigo 24 da Constituição Federal (CF). De acordo com o artigo, compete à União, Estados e Distrito Federal legislar concorrentemente sobre a defesa do consumidor. “Ou seja, isso não inclui os municípios. Os municípios não podem concorrer com legislações genéricas ou abrangentes. Elas podem tratar de assuntos locais. Mas, olhando a lei, qual o interesse local nisso?”, disse.
Trecho já existe no Código Penal
Em outras palavras, Cláudia afirma que o código de São Paulo é formado por regras que tratam de problemas locais e também de assuntos mais abrangentes. O problema está justamente nesse segundo caso. Segundo ela e outros especialistas, problemas locais podem ser alvos de legislações municipais. Já os temas mais abrangentes correm o risco de se tornarem inválidos, pois concorrem com o Código de Defesa do Consumidor. O CDC é uma lei federal e não poderia ter como concorrente uma lei municipal. Em tese, isso seria proibido pela CF.
Além disso, as normas locais presentes no CDC municipal não necessariamente representam uma novidade para a defesa do consumidor do paulistano. Há trechos já previstos em outras leis, como é o caso do CDC. É o que afirma Ricardo Marfori, sócio do escritório Costa Marfori advogados e especialista em relações de consumo. “Não há nenhuma inovação que não seja objeto de outras leis nacionais. Efetivamente, eu entendo que a lei compila outras normas e inclui até mesmo decisões do STJ”, resume.
Um exemplo de lei que já existe e está presente no código de São Paulo está previsto no inciso dois, parágrafo segundo. Nela, a lei municipal afirma que é considerado abusivo a exigência de caução (ou garantia) para atendimento médico-hospitalar. Ocorre que o assunto já está presente em uma lei federal e pior: é um crime previsto no Código Penal, artigo 135-A. “Um ponto evidente é que a caução (ou garantia) está prevista no Código Penal. Ou seja, isso é um crime e é muito pior que um desrespeito ao código de defesa do consumidor do município. Não é preciso uma lei”, disse Marfori.
Outro detalhe dentro do Código da cidade que chama a atenção é o 18, do parágrafo quarto. E este é o ponto mais curioso, segundo especialistas ouvidos pela Consumidor Moderno. O texto afirma que será considerada cláusula abusiva aquelas que “obriguem o consumidor, nos contratos de adesão, a manifestarem-se sobre a transferência, onerosa ou não, para terceiros, dos dados cadastrais confiados ao fornecedor, sem observância da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018”.
“A lei citada (acima) é nada menos que a Lei Geral de Proteção de Dados. Ela foi aprovada no ano passado, mas passa por um período de vacância e ainda não pode ser aplicada. A código municipal simplesmente exige algo que não existe. Isso poderá ser questionada na Justiça. É o que chamamos de uma ‘lei em tese’, ou seja, sem validade no momento”, afirma Marfori.
Julgados que viraram lei
Na avaliação dele e de outros especialistas, essas inclusões de leis que já existem se repetem ao longo de todo o código da cidade. E não é só isso. O CDC municipal inclui temas que já foram julgados pela Justiça e até mesmo pacificados. Um exemplo é o artigo 4º, inciso 18 do código municipal de defesa do consumidor, que afirma: “Eximir de responsabilidade o fornecedor nos casos de furto ou qualquer dano constatado nos veículos estacionados em áreas preservadas para este fim, em seu estabelecimento”.
Segundo Dori Bocault, advogado e especialista em defesa do consumidor, o caso citado anteriormente já foi julgado e resolvido pela Justiça, inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). “Essa responsabilidade do estacionamento está presente na súmula 130 do STJ. A súmula já responsabiliza o estabelecimento. Penso que o legislador teve a boa intenção e apenas quis deixar o assunto mais explícito”, afirma.
Cobrança
Por outro lado, o código também trouxe uma inovação, mas não necessariamente em práticas e cláusulas abusivas. O parágrafo 16 do código cita a obrigação de empresas que atuam na cidade em pagar por cada reclamação fundamentada registrada pela prefeitura. Esse valor alimentaria um fundo municipal.
Segundo o texto da lei, a empresa é obrigada a pagar R$ 300 por cada reclamação fundamentada. Além disso, caso a queixa seja fundamentada e não seja respondida pela empresa, o valor sobe para R$ 750. Especialistas como Cláudia Silvano não souberem informar se existem procons municipais ou estaduais que realizam o mesmo tipo de cobrança. “Eu nunca ouvi falar desse tipo de cobrança. Penso que isso poderá ser questionado por empresas, inclusive na Justiça, sobre o que é uma reclamação fundamentada e se ela foi ou não respondida”, afirma.
Bocault e Marfori também não souberam dizer se essa é uma prática recorrente em outros órgãos de defesa do consumidor. No entanto, mesmo que não exista, Bocault afirma que São Paulo normalmente é exemplo para outras câmaras municipais, o que poderia resultar na disseminação de criação de códigos locais em todo o País. “Já pensou a confusão jurídica se as 5.570 cidades brasileiras decidissem criar os seus próprios códigos. Será uma bagunça”, explica.