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A imagética da deficiência

A imagética da deficiência

A imagética da deficiência pode reforçar o capacitismo, estereótipos e narrativas equivocadas sobre a realidade das pessoas com deficiência.

Já estamos acostumados ao conceito de letramento, mas, não, ao de imagética da deficiência, este tão ou mais importante do que aquele. Enquanto letramento, neste contexto, pode ser definido como o processo pelo qual pessoas aprendem e desenvolvem consciência sobre os significados, representações, direitos e dinâmicas sociais relacionadas à deficiência. Imagética se refere ao conjunto das imagens mentais, simbólicas ou visuais, positivas ou negativas, realistas ou fantasiosas, que marcam a forma como a deficiência é vista e percebida pela sociedade.

Na verdade, ambos os conceitos são complementares e interagem entre si. Ou seja, a palavra impacta a imagem e vice-versa, influenciando e, não raro, determinando como compreendemos mentalmente uma questão e, consequentemente, como nos comportamos em relação a ela.

Idealmente, hoje, a discussão sobre estes conceitos tem como objetivo o desenvolvimento de nossa capacidade crítica de compreender, interpretar, questionar e transformar os discursos, práticas sociais, simbologias e estruturas que envolvem a deficiência. Indo muito além do técnico ou biomédico, propondo, na verdade, uma transformadora alfabetização social, cultural e política, visando promover o reconhecimento e o combate ao capacitismo, a valorização da diversidade corporal e sensorial, bem como a promoção de práticas verdadeiramente inclusivas.

Semânticas estabelecidas, vamos analisar como as pessoas com deficiência são retratadas visualmente, quais os reflexos dessa imagética e como ela é contemplada pela sociedade em geral. Para formular as referências abaixo, contei com a colaboração do amigo Rodrigo Credidio, da consultoria GoodBros, mestre em empatia corporativa! 

Para começar, você já ouviu falar sobre Cesare Lombroso? Na transição para o século XX, Lombroso (1835–1909), considerado o pai da criminologia moderna, propunha a teoria do “criminoso nato”, segundo a qual certas pessoas nascem propensas ao crime por causa de características biológicas e físicas, como formato do crânio, assimetria facial, orelhas irregulares, sobrancelhas grossas, mandíbula saliente etc. Resumindo: associava traços físicos a características comportamentais, alteridade corporal a periculosidade moral. Os Irmãos Metralha, personagens da Disney, representam, para mim, em termos de estereótipo, essa teoria determinista.

Esse imaginário foi duramente combatido por falta de comprovação científica, assim como por se contrapor ao humanismo, ao antropocentrismo e ao livre arbítrio. Embora, empiricamente, esses estereótipos estéticos, para o bem ou para o mal, sempre influenciaram – e ainda o fazem – a maneira como as pessoas enxergam e avaliam as outras.

A imagética lombrosiana tinha foco na identificação de criminosos, mas é possível fazermos um paralelo com o conjunto de representações visuais, simbólicas e culturais, que, ao longo da história, também marcaram os corpos com deficiência, sempre com significados estigmatizantes – ora como monstros, como aberrações, ora como heróis da superação. Esses preconceitos estão no cerne do capacitismo estrutural, que invisibiliza a complexidade dos indivíduos com deficiência, reduzindo-os, por default, à condição de, como explicita o próprio termo, incapazes.

Demonstrando, na prática, como esses arquétipos estão arraigados, a indústria cultural – com destaque, aqui, novamente para a Disney – reproduz e consolida essa imagética. Personagens com deficiências ou traços “anormais” são comumente associados à maldade, ao grotesco ou ao crime. Por exemplo, o vilão Lotso, de Toy Story 3, usa uma bengala após ser corrompido; o pirata de Enrolados tem um gancho no lugar da mão; e o próprio Capitão Gancho, de Peter Pan, é um homem mutilado, marcado pelo desejo de vingança. Isso tudo não é acidental, pois pertence a um repertório visual que conecta deficiência a desvio de caráter, o corpo fora do padrão à incapacidade.

Para mim, o personagem mais emblemático dessa imagética é o Corcunda de Notre Dame, nosso conhecido Quasímodo! Deformado, foi segregado – como sempre se fez e ainda acontece– à torre da igreja, provocando medo e piedade, mesmo que o filme tente inverter a narrativa, com o “monstro” que é bom e o “normal” que é perverso.

Da ficção para as campanhas publicitárias, cada vez mais “inclusivas”, as pessoas com deficiência, via de regra, me parecem deslocados e fora de contexto, sempre apresentadas como heróis, que “venceram limites” ou que são “exemplos de vida”, mas nunca como cidadãos comuns. Além do mais, frequentemente, esses comerciais utilizam atores sem deficiência para representar pessoas com deficiência, prática conhecida como “cripface“, ainda por cima, excluindo artistas com deficiência de oportunidades de trabalho e visibilidade.

Também contribuindo para que a imagética seja negativa, temos os símbolos técnicos usados para representar acessibilidade e deficiência, normalmente naquele azul característico, como o da cadeira de rodas, do amputado, da bengala ou do cão-guia. Embora essas imagens sejam essenciais para indicar recursos disponíveis, sua utilização reforça a associação da deficiência à limitação e à dependência, em vez de promover uma visão das capacidades e contribuições potenciais.

Outro exemplo notório de uso equivocado de imagens, agora na linha do “coitadismo” beneficiente, se dá nos Teletons, que buscam arrecadar fundos para instituições que atendem pessoas com deficiência. Para tanto, como estratégia de marketing, mostram crianças e jovens com deficiências severas, intelectuais e múltiplas, com o intuito de sensibilizar – e, aqui entre nós, provocar sentimento de culpa –, para que o público faça mais doações. Mesmo que a iniciativa tenha objetivos nobres e seja importante que a sociedade saiba da existência dessas pessoas, os fins não justificam os meios, principalmente por oferecerem uma ultrapassada visão assistencialista da deficiência.

Como com os esforços do letramento, temos que buscar desconstruir essa imagética “lombrosiana” e substituí-la por narrativas visuais mais positivas, mais reais, nas quais a deficiência deve ser retratada como uma característica e, não, como definidora da essência das pessoas! Romper com esses roteiros pré-fabricados do capacitismo inaceitável, criando uma nova imagética, é tarefa urgente para quem luta por uma cultura verdadeiramente inclusiva, em um mundo mais diverso e plural, melhor para todos, sem exceções.

Cid Torquato é advogado e CEO do ICOM. Foi Secretário Municipal da Pessoa com Deficiência de São Paulo entre 2017 e 2021 e Secretário Adjunto de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência entre 2008 e 2016. É autor do livro “Empreendedorismo sem Fronteiras – Um Excelente Caminho para Pessoas com Deficiência”.

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