Há uma velha máxima de que o brasileiro adora uma fila, seja ela no banco, supermercado, para comprar pão, na estrada e até mesmo em um parque de diversões.
No ano passado, os brasileiros foram apresentados a uma outra forma de fila, desta vez virtual. Milhões de pessoas usaram o aplicativo da Caixa Econômica Federal para acessarem ou obterem informações sobre o auxílio emergencial. O servidor do banco não suportou o volume de acesso e milhares de pessoas não concluíram a operação. No fim, quem acessou o aplicativo foi colocado em uma fila virtual até ser atendido. Há relatos de pessoas que esperam aproximadamente uma hora para ter acesso aos serviços do app.
Se o atendimento fosse presencial, o banco provavelmente teria infringido normas que limitam o tempo de espera e vigoram em cidades como São Paulo e até no Distrito Federal. Mas no mundo virtual tudo acontece de uma maneira um pouco diferente.
Resolução da ONU
A existência de filas virtuais não é um fenômeno necessariamente novo no País. Ele já ocorre há algum tempo no atendimento feito por um humano no chat (evidentemente com menor grau que o aplicativo do banco). A pandemia, por sua vez, apresentou outras formas de filas virtuais. Agora, é comum uma pessoa aguardar o atendimento médico por meio da telemedicina.
Por ora, as filas virtuais não parecem incomodar o consumidor, tanto que não existem queixas de consumidores registradas na Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon). O problema maior é quem se acostumou a utilizar esse direito no mundo físico e, após a pandemia, “perdeu” esse direito com a migração para o mundo digital. A lista inclui idosos com mais 65 anos, gestantes, lactantes, obesos, entre outras pessoas.
Segundo Pedro Aurélio de Queiroz Pereira da Silva, diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), do Ministério da Justiça, o direito a preferência de idosos e outros grupos é uma construção baseada na velha economia. E, ao que tudo indica, essa conquista ainda não migrou para o mundo digital.
“O estatuto do idoso prevê uma série de preferências, seja em vagas de estacionamento, seja em questão de transportes coletivos, e outros. Então, essas preferências no âmbito da velha economia sempre foram positivas e legítimas a meu ver. Agora, com relação a essa questão da economia digital, nós temos diversos desafios porque essas questões não foram previstas em relação à internet”, explica.
Tudo indica que o Poder Público não deve demorar para debater a preferência do idoso e outros direitos construídos dentro da velha economia. O motivo, segundo o diretor do DPDC, é a existência de uma recente resolução da ONU que defende que os direitos dos consumidores na internet e no mundo físico sejam, no mínimo, iguais.
“A última resolução da ONU afirma que os direitos dos consumidores na internet devem ser, no mínimo, iguais e nunca inferiores aos direitos fora da internet, ou seja, na economia real. Então, partimos de uma situação em que a gente tem que, no mínimo, igualar esses direitos. O desafio é a compreensão de como as relações se dão no âmbito digital e as coisas foram acontecendo sem que o direito atuasse previamente”, explica.
Interpretações
Há juristas que afirmam que as leis atuais, tais como o Estatuto do Idoso e o Código de Defesa do Consumidor (CDC), já seriam suficientes para garantir as preferências no atendimento no mundo virtual. Ou seja, não precisaríamos de novas leis.
Renato Opice Blum, especialista em direito digital e vice-presidente da comissão de direito e inovação da OAB-SP, explica que o CDC é reiteradamente disciplinado e regulamentado por normas administrativas especialmente da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon). Uma dessas regulações, o Decreto do SAC, contém regras que garantem justamente alguns direitos do mundo físico para o digital.
“No art. 6º desse decreto, diz que pessoas com deficiência auditiva ou de fala terão garantia pelo SAC em caráter preferencial, e fica facultado à empresa atribuir um número telefônico específico para essas pessoas. Pessoas que tem deficiência auditivas, em tese, tem, por interpretação, preferência para esse atendimento. Agora, por interpretação, se você tem essa preferência no meio físico e que justifica por uma questão de idade, gravidez, e outras, você pode interpretar isso no mundo digital de acordo com as dificuldades que essas pessoas possam ter no mundo digital”, explica Opice Blum.
Exemplos de preferências no mundo digital, segundo Opice Blum, já existem. O Judiciário já garante a preferência do idosos no processo judicial eletrônico. Até empresas já garantem isso. “Algumas empresas fazem esse atendimento preferencial voluntariamente; outras, ainda não fazem, porque não existe uma regulamentação — o que, em breve, deve acontecer”, aponta o jurista.
Declaração de preferência
Leandro Caldeira Nava, especialista em Direito do Consumidor, professor convidado de Pós-Graduação do SENAC, professor de Graduação na UNIFMU, também afirma que o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso seriam suficientes para garantir o direito de preferência no atendimento. No entanto, eles prevê dificuldades na aplicação do direito no mundo virtual. E uma delas (a principal) seria comprovar que uma pessoa é realmente idosa em um atendimento preferencial de um chat.
“Nós tivemos um aumento muito grande no consumo eletrônico que, por mais que tenha crescido, a legislação é a mesma que sempre se aplicou no Código de Defesa do Consumidor. Por exemplo, a questão do atendimento preferencial. Só que, como você vai configurar que a pessoa tenha essa comorbidade ou preferencialidade? Por mera declaração dela! Hoje, os canais de atendimento como SAC, não trazem nenhum tipo de agilidade ou preferência para essas pessoas que se autodenominam de grupos preferenciais”, afirma Nava.
Nava ainda prevê que a exigência de comprovação de uma determinada comorbidade poderá resultar em um problema moral e jurídico para as empresas. “Não existe ainda nenhuma instrumentalidade de como será feito. Se for apenas via declaração, pode se tornar um problema. De que forma a empresa vai se certificar de que um consumidor é obeso, por exemplo? Então a gente entra em uma questão moral e jurídica”, afirma.
A saída, segundo ele, seria regular apenas a maneira de comprovar o direito de preferência, incluindo possíveis punições de pessoas que se passam por idosas para furar a “furar fila”. Hoje, não é incomum punir espertinhos em filas. O caso mais recente foi a aprovação de uma norma no estado de São Paulo que prevê multa de até R$ 48 mil para quem furar a fila da vacina da Covid-19.
De acordo com os especialistas, o debate sobre a regulação das filas virtuais é apenas um dos temas de direitos conquistados na velha economia e que poderiam ser adaptados para o mundo virtual. Será que as lojas virtuais serão obrigadas a oferecer em local visível no site o arquivo do CDC para download?
*Com participação de Carlos Eduardo Vasconcellos