O contrato de fidelidade vem causando muitas reclamações de consumidores no Brasil. De um lado, estão as empresas, oferecendo os tais programas de fidelidade como forma de recompensas e vantagens para clientes que escolhem a marca. E de outro lado, estão os consumidores , que se sentem lesados ao precisar cancelar um serviço e ter que arcar com pesadas multas.
Mas, por que muitos consumidores se sentem lesados?
Em primeiro lugar, está a falta de clareza nas cláusulas. Em outras palavras, muitas vezes, os consumidores não compreendem os termos que aceitam, resultando em surpresas desagradáveis ao longo do tempo. “Ademais, não raras vezes, o consumidor não dedica um tempo para ler todas as condições das ofertas e dos serviços. Por consequência, é normal que surjam atritos em relação às regras estabelecidas pela empresa”. A explicação é de Aluisio Cirino, CEO da Alloyal, especialista em soluções de lealdade entre empresas e consumidores.
Acontece que as multas previstas pela chamada cláusula de fidelidade estão dentro da lei. Mas para evitar esse tipo de problema, é fundamental que, ao utilizar um serviço, o consumidor leve em consideração os termos e condições. Isso porque, muitas vezes, seus direitos podem ser desrespeitados nessas cláusulas.
Fidelidade versus Cancelamento
Além disso, a dificuldade de cancelamento é um ponto crítico. Muitas empresas criam obstáculos que tornam o processo frustrante e exaustivo. Outro aspecto a considerar é o custo escondido. Ofertas atrativas podem se transformar em armadilhas financeiras, gerando um ciclo de gastos que o consumidor não previu. E, por fim, a retenção de dados e informações pessoais. Os contratos de fidelidade muitas vezes exigem informações sensíveis, levantando questões sobre a privacidade do consumidor. Mas, até que ponto tudo isso é justo?
É fundamental esclarecer que essa cláusula é, de fato, legal conforme as leis vigentes no território nacional.
A cláusula de fidelidade é muito comum nos serviços de telefonia, televisão e internet. Também conhecida como contrato de permanência, é um item relacionado à prestação de serviços. O termo, inclusive, é definido como um contrato acessório conforme aponta o Regulamento Geral de Direitos do Consumidor de Serviços de Telecomunicações (Anatel). O dispositivo consta na Resolução nº 632/2014.
Segundo a Anatel, o fornecedor do serviço disponibiliza benefícios ao consumidor. E, em contrapartida, esse deve assinar um contrato concordando em utilizar o serviço por um período determinado. Após o término do período estipulado na cláusula de fidelidade, o cliente tem o direito de cancelar o serviço sem a aplicação de qualquer multa. Entretanto, o prazo mínimo para um contrato de permanência é de 12 meses.
Obrigações do fornecedor
Assim, é imprescindível que no contrato o fornecedor informe claramente a data de vencimento do serviço, os benefícios oferecidos ao consumidor e todas as informações relevantes para que o cliente mantenha o vínculo temporário pelo período acordado.
De acordo com Thais Matallo, sócia da área de Direito das Relações de Consumo do Machado Meyer, a utilização do contrato de fidelidade não é vedada pela legislação brasileira. Isso porque ela está vinculada à vontade do contratante. “No entanto, diante da necessidade de preservar-se o equilíbrio entre as partes, a sua estipulação deve garantir vantagens efetivas ao consumidor, com o fornecimento de benefícios e descontos, por exemplo. Nesse cenário, a vinculação por prazo pré-estabelecido surge também como forma de garantir ao fornecedor a recuperação do investimento realizado em função de tais benesses”.
No que tange às multas, Danielle Iglesias, advogada especialista em relações de consumo, também do Machado Meyer, enaltece que é lícito o contrato prever sim o pagamento de multa em razão de seu término em prazo anterior ao inicialmente acordado, por decisão de uma das partes. No entanto, tal prática pode ganhar contornos abusivos quando configura o pagamento de valor desproporcional e desarrazoado. “Não há um limite específico estabelecido em lei para a licitude das multas. E o Poder Judiciário usualmente realiza a análise de cada caso individualmente. Em outras palavras, a Justiça leva em consideração os prejuízos efetivamente sofridos pela parte que permanece na relação contratual e os investimentos por ela realizados”.
Código de Defesa do Consumidor
Adicionalmente, tanto Thais quanto Danielle pontuam que o Código de Defesa do Consumidor também traz disposições específicas que visam proteger os consumidores de cláusulas abusivas. “Ao celebrar um contato, é importante que o consumidor verifique com atenção a multa prevista em caso de cancelamento e consulte um advogado na hipótese de considerar que a cobrança ultrapassa os limites da razoabilidade, considerando o valor e o investimento do fornecedor nos serviços contratados”.
As multas são uma ferramenta para garantir que os clientes cumpram acordos de fidelidade. Ao serem questionadas sobre o fato que as multas incentivam a continuidade e desincentivam a desistência, as especialistas são enfáticas: “É necessário ter em mente, primeiramente, que a celebração de um contrato pressupõe que ambas as partes – tanto o fornecedor quanto o consumidor – o fizeram no exercício de sua autonomia da vontade”.
Todavia, em certas situações, quando se constata a imposição de uma multa excessiva, o consumidor dispõe de mecanismos legais que garantem sua proteção, especialmente com base nas disposições do Código de Defesa do Consumidor. “Nesse contexto, ao reconhecer que o fornecedor tem o direito de ser compensado dentro dos limites dos danos causados pela desistência, a presença da multa encontra justificativa, conforme mencionado, na razoabilidade e na proporcionalidade do valor aplicado”, afirma Thais Mattalo.
Benefícios aos consumidores
Por sua vez, Fabíola Meira de Almeida Breseghello, CEO do Meira Breseghello Advogados, aponta que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao enfrentar o tema, decidiu que a cláusula de fidelidade em contrato de telefonia (móvel e fixa), por exemplo, é considerada lícita quando há concessão de benefícios aos consumidores (descontos, pagamento de tarifas inferiores, bônus e fornecimento de aparelhos, por exemplo).
Fabíola, que é diretora do Comitê de Relações de Consumo do Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (IBRAC), lembra do entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) – Recurso Especial 1097582 que “não caracteriza a prática vedada pelo art. 39, inc. I, do CDC, a previsão de prazo de permanência mínima (“fidelização”) em contrato de telefonia móvel e de “comodato”, contanto que, em contrapartida, haja a concessão de efetivos benefícios ao consumidor”.
“Dessa forma, é importante que seja respeitada a liberdade de escolha do cliente em manter-se fidelizado mediante preços mais atrativos, por exemplo, ou seguir com a contratação regular, com outras condições de preços ou vantagens, ou seja, planos sem fidelização”, explica Fabíola.
Aos consumidores, ela recomenda que, antes de aceitarem qualquer vantagem ou promoção, leiam e questionem quais são os deveres das partes, assim como as obrigações que terão ao aceitar determinada oferta ou fidelidade. O cliente deve solicitar uma cópia do contrato e dos termos e condições. “Mesmo que não compreenda totalmente o conteúdo, deve perguntar à empresa e esclarecer suas dúvidas antes de qualquer contratação, especialmente em relação a prazos, condições de permanência e a possibilidade de desistência sem penalidades”.
Fidelidade deve ser conquistada, não forçada
“A criação de experiências personalizadas pode aumentar a fidelidade, já que consumidores tendem a valorizar marcas que reconhecem suas preferências e necessidades”. Esse é o pensamento de Aluisio Cirino, que acredita que as empresas que investem em lealdade tendem a ter mais consumidores satisfeitos. Ademais, outra vantagem dos programas de lealdade é poder usar dados e análises para entender melhor o comportamento do consumidor, ajustando suas ofertas e interações de acordo com as expectativas do público.
Ele expõe que a marca também deve se esforçar para manter uma imagem positiva, pois a confiança é um fator chave na lealdade do consumidor. Problemas como má qualidade do produto ou atendimento ao cliente insatisfatório podem rapidamente levar à perda dessa lealdade conquistada.
E mais: a fidelidade imposta pode ter suas limitações. Os consumidores atuais têm acesso a uma variedade imensa de opções e estão mais informados do que nunca, o que pode levar à desconexão se a experiência oferecida não corresponder às suas expectativas. Portanto, as empresas devem buscar não apenas a fidelidade, mas também a satisfação genuína de seus consumidores.
Em suma, as empresas podem, de fato, criar um ambiente que favoreça a lealdade do consumidor, mas essa fidelidade deve ser construída sobre a confiança, a qualidade e a satisfação. “A imposição de fidelidade, sem um compromisso verdadeiro com as necessidades do cliente, pode resultar em resistência e insatisfação”, finaliza Aluisio Cirino.