José Mindlin (1914-2010) foi um brilhante jornalista, advogado e cofundador da empresa Metal Leve – e que mais tarde se tornaria uma referência no setor automotivo. No entanto, ele ganhou fama pelo grande volume de livros reunidos, o que acabou se tornando a maior biblioteca particular do País: foram mais de 17.000 títulos ou 40.000 volumes, inclusive as primeiras edições de obras de Machado de Assis e o manuscrito de Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Antes de morrer, ele doou parte de suas obras para a USP, sendo que algumas delas foram digitalizadas.
É inegável o imenso valor cultural dos livros de Mindlin, porém há outra valoração igualmente indiscutível sobre o seu acervo: o financeiro.
Livros, assim como qualquer obra de arte, muitas vezes tem seu valor medido por fatores como disponibilidade (ou até exclusividade), relevância para a sociedade, entre outros fatores. Mas e se em vez de livros físicos, o acervo fosse digital? E se o manuscrito de Vidas Secas se perdesse com o tempo, restando apenas o arquivo digitalizado? Qual seria o valor de uma biblioteca virtual com as mesmas obras reunidas por Mindlin?
Essas perguntas (e outras tantas) estão no centro de um debate sobre o chamado bem virtual, algo que avança na mesma velocidade da transformação digital e que vai impactar a vida do consumidor.
O que é o bem virtual?
Hoje, o bem virtual ainda não possui uma conceituação definida por lei. O que existe são teorias acadêmicas e projetos de leis de parlamentares ainda em discussão no Congresso Nacional.
A ideia é entender, por exemplo, como poderemos comprar , revender ou até trocar livros, jogos e tudo aquilo que que somente é acessado exclusivamente por meio de um computador ou celular. Mais: como podemos calcular o valor de uma biblioteca totalmente virtual (livros que foram comprados em sites como a Amazon) que poderá ser alvo de uma disputa de herança?
“Já é sabido que o conceito de ‘bens’ engloba bens materiais ou imateriais que servem de objeto a uma relação jurídica. Mas, em um mundo hiperconectado qual seria o limite e alcance de bens digitais? Alguns Projetos de Lei (como o PL nº 4.847/2012), parecem conceituar bens digitais de forma ampla como sendo ‘tudo o que é possível guardar ou acumular em espaço virtual’. Assim, a ideia de bens digitais pode englobar bens imateriais, de valor patrimonial ou não, que integram o meio eletrônico”, explica Caio César de Oliveira, advogado, especialista em direito digital e autor do livro “Eliminação, Desindexação e Esquecimento na Internet”.
Hoje, sem uma lei, juristas fazem associações com normas já existentes para tentar contornar disputas que já ocorrem no judiciário. Um exemplo é o Código Civil de 2002. “Já temos muitos institutos que podem ser utilizados para proteção desses bens, como a responsabilidade civil, que representa o dever de indenizar alguém por algum dano, mas, como os bens digitais, não raro, são intangíveis, não é tão simples mensurar a extensão de um dano”, afirma.
Exemplo: banco de dados
No entanto, a ideia de bem virtual não está relacionado apenas a itens pessoais. Os exemplos também se multiplicam tanto no mundo corporativo quanto no poder público conforme a sociedade avança na transformação digital.
De acordo com a consultoria IDC (International Data Corporation), a quantidade de dados digitais dobra a cada dois anos, sendo que somente em 2020 o mundo gerou cerca de 350 zettabytes de dados ou 35 trilhões de gigabytes. Até o ano passado, o IDC estimava que a humanidade armazenou aproximadamente 500 quatrilhões de informações armazenadas no universo digital.
Ou seja, estamos falando de uma quantidade imensa de coisas digitais. Há desde segredos industriais, arquivos bancários e até fotos ou vídeos pessoais que, embora não tenha valor financeiro, há uma valoração sentimental inestimável para uma determinada família. E se as fotos digitalizadas dos filhos fossem deletadas? Será que caberia uma indenização por dano moral contra a Apple ou Google?
Até por esse motivo, o debate sobre o bem virtual também se relaciona com o vazamento de dados e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. “A crescente onda de incidentes de segurança (ataques hacker, vazamento de dados e outros) demonstra que é necessário repensarmos os mecanismos e tutelas que temos para proteger bens digitais e, especialmente, apontam para a necessidade de mecanismos de prevenção e precaução. Não por acaso, a LGPD elenca a prevenção e a segurança como princípios. Assim, a adoção de medidas para prevenir a ocorrência de danos, acessos não autorizados, destruição, perda, alteração de tais bens é primordial”, disse Oliveira.
Exemplo: Canal no Youtube
Um dos exemplos curiosos de bem virtual citado por Oliveira diz respeito a blogueiros.
Segundo ele, a rede social de youtubers como Felipe Neto e Whindersson Nunes também seria um bem virtual, pois, entre outros motivos, ele é o meio de obtenção de rendimentos – e que rendimentos. Isso ocorre porque o Youtube remunera os blogueiros com base na quantidade de visualizações somados a outros fatores.
O site Social Blade, por exemplo, possui uma ferramenta que faz um cálculo estimado da monetização desses criadores de conteúdo. Segundo eles, a métrica é em dólar e utiliza uma regra chamada Custo Por Mil (CPM). Ou seja, a cada mil visualizações, o youtuber arrecada entre US$ 0,25 e US$ 4 ou, em reais (com a cotação da moeda americana a R$ 5,7), seria entre R$ 1,425 a R$ 22,8.
O canal de Felipe Neto acumulou 243,94 milhões no último mês e teria faturado entre US$ 61 mil (R$ 348 mil) a US$ 975,8 mil (R$ 5,57 milhões). Também em fevereiro, Whindersson Nunes teria acumulado 16,7 milhões de visualizações no Youtube e faturou entre US$ 4,2 mil (R$ 23,9 mil) a US$ 67,1 mil (R$ 382 mil).
Um adendo: embora Whindersson Nunes tenha mais inscritos no Youtube que Felipe Neto, o volume de vídeos do segundo youtuber é maior. O último vídeo de Nunes foi publicado há um mês. Já Felipe Neto produz mais de um vídeo por dia.
Agora, pensamos na seguinte hipótese: e se os youtubers simplesmente parassem de produzir vídeos e deixassem os acessos dos canais como herança para alguém? E se em vez de um filho, eles tivessem dois ou mais herdeiros. Nesse caso, como seria feito a partilha dos ganhos do acesso do canal?
“Ainda existem muitas dúvidas e incertezas sobre a tutela de bens virtuais. Se eu morrer, para quem vai a minha biblioteca digital? Ou ainda se tenho um perfil rentável nas redes sociais, como estimar o valor disso e fazer uma sucessão?”, explica Caio.
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