Nesta quinta-feira (6), a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) promoveu um workshop para apresentar os resultados de um estudo produzido pela Ernst & Young com sugestões de regulamentação para a lei 14.181/2021, mais conhecida como a lei do superendividamento. Entre outros pontos, a regulamentação prometida pela Senacon vai abordar o conceito de mínimo existencial, ou seja, o valor mensal que não poderá ser utilizado para o pagamento de superdívidas. A “mãe da lei do superendividamento”, que participou do encontro virtual, criticou o estudo.
Leia mais: O que é o mínimo existencial previsto na lei do superendividamento?
Em linhas gerais, o estudo analisou o cenário do superendividamento do Brasil e analisou como o assunto é tratado em cinco países: EUA, Chile, Colômbia, França e Alemanha. Desses, a França é a única que possui uma lei que trata especificamente do superendividamento, além de explicar o conceito de mínimo existencial. Os demais países abordam o tema como “falência”, muito embora possuam mecanismos para auxiliar pessoas superendividadas.
Essas e outras análises resultaram em um estudo com mais de 400 páginas e 12 recomendações da consultoria para a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon). São elas:
- Criação, pela Senacon, de um selo específico, a ser emitido mediante a solicitação expressa dos fornecedores e/ou agentes autorizados interessados, observado o cumprimento de regras e requisitos previamente padronizados pela Senacon, a fim de demonstrar e garantir a qualidade do conteúdo constante nos contratos de crédito celebrados com os consumidores;
- Criação de regulamentação específica para exigir que os contratos de crédito celebrados entre os fornecedores de produtos e serviços financeiros e os correspondentes consumidores sejam acompanhados por uma folha-resumo padronizada, contendo, dentre outros elementos, as principais cláusulas de tal instrumento;
- Criação de mecanismos de regulação e autorregulação nas campanhas publicitárias relacionadas à concessão de serviços e/ou produtos financeiros, objetivando o maior acesso à informação e aumentando a transparência da relação com o consumidor;
- Definição de exceções relativas à obrigatoriedade de informar preços por unidade de medida;
- Padronização da unidade de medida para mesmos tipos de produtos;
- Regulamentação e aprimoramento de um programa de educação financeira em âmbito nacional, com projetos voltados aos jovens no ambiente escolar, à população em geral e a grupos vulneráveis;
- Regulamentação e expansão do programa de apoio ao superendividado a nível nacional, em parceria com os Procons;
- Criação de Centros de Aconselhamento Financeiro (CAF), os quais seriam qualificados como tal a partir da concessão de um selo de qualificação, pela Senacon ou outro órgão competente, a estruturas públicas, associações ou empresas privadas que prestem serviços de apoio financeiro;
- Definição de sistema para iniciação e centralização de acesso à via administrativa do processo de repactuação de dívidas;
- Incentivo para que o consumidor utilize soluções extrajudiciais para solução dos conflitos de consumo;
- Definição das etapas e ritos procedimentais no processo de repactuação de dívidas e uso de tecnologia para auxílio na elaboração de propostas de renegociação;
- Adoção de ferramentas que proporcionem parâmetros unificados para auxílio na caracterização do mínimo existencial.
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Renegociação global
Após a apresentação dos resultados, os participantes do workshop apontaram pontos positivos, mas também criticaram alguns pontos do estudo. Um deles é que o o levantamento se preocupou em apontar iniciativas estrangeiras e deixou de lado boas práticas brasileiras, tais como o programa Aprender Valor, iniciativa de educação financeira e que utiliza dinheiro do fundo de direito difuso (administrado pela Senacon).
No entanto, as principais críticas mais contundentes partiram de Cláudia Lima Marques, advogada, professora de direito consumidor e apontada como “mãe da lei do superendividamento”.
Ela discordou, por exemplo, que o objetivo da norma seja a renegociação das dívidas, segundo aponta o estudo. Trata-se, na verdade, de uma lei que combate a exclusão social. “O superendividamento tem como objetivo evitar a exclusão social do consumidor. Então, não é uma lei, como sugere os produtos 2, 3, 4 e 5 (partes do estudo), para renegociação das dívidas”, corrige.
Outro problema apontado no estudo, segundo Lima Marques, é a ausência da palavra “global” dentro do contexto da negociação das dívidas com credores. E por que ela é tão importante?
“(A inclusão do global) é a finalidade da lei. Mas, no estudo de 400 páginas, não aparece em nenhum momento a palavra ‘global’. Em nenhum momento é dito que essa renegociação de dívida ou que o plano de pagamento é de um consumidor com todos os seus credores, logo global. Essa é a diferença. Esse é o espírito da lei, que foi totalmente, eu diria, neutralizado ou desconhecido pelo estudo de 400 páginas”, afirma.
Consumidor.gov é o caminho?
Lima Marques também discordou da sugestão da consultoria de utilizar a plataforma Consumidor.gov.br para a renegociação em bloco. Segundo ela, a recomendação é inviável, pois a plataforma foi desenvolvida para realizar negociações individuais.
“O Consumidor.gov não permite a renegociação em bloco das dívidas. Além disso, essa individualização contraria a lei da renegociação das dívidas no Brasil. Os Procons devem fazer a renegociação global. Aliás, até a Febraban está fazendo renegociações globais já faz algum tempo”, afirma.
A professora ainda explicou que a proposta de negociação em bloco, prevista na lei de superendividamento, visa preservar o chamado mínimo existencial. Em outras palavras, com base na lei, o consumidor superendividado irá convocar e comunicar todos os credores sobre o valor disponível para o pagamento da dívida, excluindo da negociação os valores que ele utiliza para pagar despesas como comida, saúde, educação e outras.
Privatização do superendividamento
Segundo Lima Marques, as “12 recomendações são de difícil cumprimento”. No entanto, o que parece preocupar é o conjunto de recomendações que poderiam resultar em “uma certa privatização do superendividamento” contrária a lei do superendividamento.
Um exemplo é a criação do Conselho de Aconselhamento Financeiro, que poderia ser organizado e oferecido aos consumidores até mesmo por empresas. Ela lembra que a lei do superendividado autoriza apenas os integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC).
“A lei 14.181 é bem clara no artigo 104, parágrafo C, que apenas os órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor podem (realizar a fase conciliatória e preventiva da norma). A regulamentação não pode ser contra a lei. Só os órgãos públicos podem tratar do superendividamento. Chega ao ponto da sugestão 9 dizer que o IGG (Instituição Gestora de Garantias), instituto novo criado pelo governo Bolsonaro para substituir as garantias cartorárias, vai “acompanhar” as renegociações no Consumidor.gov.br, que, como eu disse, são individuais. Então, veja, há uma privatização nas entrelinhas dessas sugestões contra a lei, contra o espírito da lei. Isso ainda é complementado com a sugestão número 10 de estimular a sugestão extrajudicial, como se fosse possível privatizar o superendividamento”, explica.
Pesquisa no Wikipedia?
As críticas de Lima Marques também foram destinadas ao uso de fontes presentes no estudo e até a inclusão de informações erradas ou desatualizadas. Ela cita como exemplo o uso do Wikipedia, a plataforma de conhecimento colaborativa e aberta.
O Wikipedia foi usado no produto 3, que é o levantamento sobre o benchmark de tratamento de superendividados. Nele, links do Wikipedia foram usados para entender três informações importantes: o processo de insolvência do consumidor na Alemanha; o funcionamento da oferta de crédito e plano de recuperação do superendividado na França; e como o tema da insolvência civil é tratado na Colômbia.
“O estudo cita uma lei de consumo francesa de 1992, mas isso não é verdade. O Código de Consumo da França, que o próprio estudo cita com dados de 2020 do Banco Central da França, é de 1993 e foi fortemente modificado em 2016. Veja: ao não citar a lei certa para o caso e ao utilizar em matéria de direito francês a Wikipedia, assim como ocorreu no direito alemão, o estudo perde em solidez, diríamos assim, acadêmico”, explica.
Outro erro de informação presente no estudo, segundo a professora, é o prazo francês para o pagamento da dívida. “O estudo afirma que o prazo francês é de 7 anos, o que também não é verdade. O prazo vai entre 5 e 7 anos. A análise a partir do benchmark, que é uma metodologia interessante, não sei é possível nesse caso. Eu acho que ela prejudica as conclusões”, afirma.
Ponto positivo: mínimo existencial na França
Por outro lado, Lima Marques ressaltou boas contribuições do estudo para o debate sobre a regulamentação da lei do superendividamento. E uma delas foi o que diz a lei francesa sobre o mínimo existencial.
Segundo o estudo, a preservação do mínimo existencial deve incluir os pagamentos de habitação, eletricidade, gás, aquecimento, água, comida, educação, saúde e outros relacionados. Depois desse levantamento prévio, é levado em conta o estado civil e a quantidade de filhos.
“No ordenamento jurídico francês, a quantia mínima (para o pagamento da dívida, após observar o mínimo existencial) é determinada pelo Código de Ação Social e Das Famílias, em seu artigo 262-2, cujo valor varia de acordo com determinados fatores, a exemplo do estado civil do consumidor (se casado ou solteiro) e quantidade de filhos. Desse modo, o mínimo existencial pode variar de acordo com as seguintes faixas: € 565,34 na hipótese de consumidor solteiro e sem filhos; € 848,01 se casado, sem filhos; € 848,01 se solteiro, com um filho; e € 1.017,61, se casado, com um filho. Vale ressaltar, ainda, que o salário-mínimo vigente atualmente no país é de EUR 1.589,47”, explica o estudo.
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