Nas últimas semanas alguns jornais e até websites se aventuraram em traçar o total de ações que desrespeitam o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Trata-se de uma conta que não possui uma resposta fácil e muito menos definitiva. No entanto, apesar das dificuldades, os números exibidos estão distantes da realidade e, de certa forma, diminuem o debate sobre o direito do consumidor.
A Consumidor Moderno listou alguns dos erros: há desde o uso incorreto dos dados e o fato de alguns processos não serem considerados nos levantamentos feitos por órgãos de imprensa.
Dados do ano passado
Um exemplo foi a recente reportagem de um conhecido jornal econômico que utilizou os dados do relatório “Justiça em Números 2020”, produzido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). E aqui estaria o primeiro erro.
O tradicional relatório do CNJ utiliza dados do ano anterior, logo o Justiça em Números de 2020 utiliza dados dos processos judiciais em 2019. E o que aconteceu?
Embora a reportagem diga que os números sejam de 2019, na verdade ela publicou as informações de 2020.
“Segundo o relatório “Justiça em Números 2020”, do CNJ, o direito do consumidor figura entre os assuntos mais demandados em 2019, sobrecarregando o sistema. Nos tribunais de Justiça estaduais, ocupa o primeiro lugar, com 4,4% de 2,3 milhões de processos. Segundo o Conselho, o total de casos em 2020 chega a 5,6 milhões, pois ainda são considerados processos ajuizados em outros ramos da Justiça, como a federal e os tribunais superiores”, dizia a reportagem.
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De acordo com os dados do CNJ de 2019, o total de ações consumeristas foi de exatos 6.736.726. Em 2020, as ações caíram significativamente e chegaram a 5.585.938 de ações ou os quase 5,6 milhões citados pela reportagem. No entanto, o uso desses números também possui falhas importantes.
Casos novos
O relatório do Justiça em Números do CNJ é dividido em três grandes grupos de quantidade de processos: baixados (ou encerrados ou com trânsito julgado), além dos novos e pendentes.
Os casos novos são aqueles que os processos possuem menos de um ano em um determinado tribunal. Já os casos em andamento são aqueles que romperam a barreira dos 365 dias.
E por que entender isso é importante? Tudo indica que os dados utilizados pela reportagem se referem aos casos novos ou uma parte da verdadeira quantidade de processos em discussão no País.
A Consumidor Moderno pediu para a Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), responsável por um dos mais amplos levantamentos de ações consumeristas do CNJ, mostra que as demandas de direito do consumidor corresponderam a 10,1% do total de casos de primeiro grau no ano em 2020 – ou mais precisamente 5.585.938 de ações. Em outras palavras, os tais 5,6 milhões é o total de processos com base no direito do consumidor que entraram em 2020 nas Justiças Estaduais, incluindo o Juizado Especial, Justiça Federal e instâncias superiores (STJ ou STF).
A reportagem não necessariamente errou nos 5,6 milhões, mas equivoca-se ao afirmar que os 2,3 milhões de processos ingressaram em 2020 nos TJs do País. Nos Tribunais de Justiça, o número seria de 5,4 milhões.
Além disso, o percentual de 4,4% alegado pela reportagem é outro equívoco.
Conforme disse a ABJ, o direito do consumidor representa 10,1% do total de casos novos que entraram nos tribunais brasileiros em 2020. No entanto, se considerarmos apenas os tribunais estaduais, o peso do CDC é ainda maior para os TJs.
E por isso acontece?
Os TJs dos Estados representam a maior porta de entrada de processos consumeristas no País e não apenas pela Justiça convencional. Os números incluem os Juizados Especiais, que somente no ano passado tinham pouco mais de 1.57 milhão de processos consumeristas. Não à toa, os Jecs, como são conhecidos, ganharam o apelido de tribunal do consumidor.
“Se considerarmos somente a Justiça Estadual, a proporção sobe para 16,1%”, afirma Julio Trecenti, secretário geral da entidade e um dos mais renomados especialistas em dados jurimétricos.
Abaixo, veja a distribuição de processos em direito do consumidor dentro dos tribunais e instâncias.
Abaixo, veja os motivos de processos com base no direito do consumidor:
Direito do consumidor em outros tribunais
Alguns especialistas ainda apontam que a quantidade de processos que citam o direito do consumidor poderia ser ainda maior. Para que isso ocorra seria necessário incluir os processos que citam o direito do consumidor, mesmo que de forma indireta.
Mais uma vez, é preciso olhar para o estudo do CNJ. Nele, o Direito Civil foi o maior assunto que mais demandou casos novos em 2020, com 12 milhões de processos.
Dentro do Direito Civil existem muitos processos que utilizem o CDC, porém o código do consumidor se torna um assunto quase secundário no processo. Infelizmente, o CNJ não consegue separar as ações que citam o Direito do Consumidor de maneira indireta, mas o fato é expressivo.
Dentro do Direito Civil, um dos temas mais comuns é a discussão na Justiça sobre a obrigação prevista em contrato entre credor e endividado. Dentro desse tema, há desde alienação fiduciária (quando o devedor, com o escopo de garantia, transfere ao credor a propriedade do bem submetida à condição resolutiva, com 574 mil processos), compra e venda de algo (217 mil casos) e até mesmo cartões de crédito (mais de 50 mil processos).
Sobre alienação fiduciária, o próprio CDC cita o tema no artigo 53. Nele, basicamente fica expresso que é proibido incluir em contrato que o consumidor perder prestações já pagas em caso de inadimplemento.
E os casos em andamento?
Há ainda os casos pendentes (ou estoque) no Judiciário, que representa aproximadamente 70% dos processos na Justiça brasileira. No entanto, ao contrário do que ocorre com os casos novos, o Justiça em Números não exibe detalhes percentuais do estoque.
Especialistas, no entanto, estimam que o direito do consumidor aparece em 30% dos processos, mesmo que de forma indireta. Isso colocaria o CDC como uma das maiores fontes de judiciailização no País.
O percentual pode parecer exagerado, porém ajuda a demonstrar o verdadeiro impacto do direito do consumidor na vida do brasileiro. E a lei do superendividamento, incluída no CDC, vem aí.
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