Uma empresa que paga até US$ 5 mil para quem quiser deixá-la definitivamente não é algo que se vê todo dia. E a Zappos.com pode ser muita coisa, menos convencional. A ideia por trás desse programa, chamado Pay to Quit, é fazer o colaborador pensar no que realmente quer. E o objetivo final é manter na empresa apenas aqueles alinhados com os valores culturais de uma varejista que é, há anos, uma das principais referências em atendimento ao cliente.
A companhia, nascida em 1999 como varejista on-line de calçados e que hoje também oferece vestuário e acessórios, adota valores como ?entregar um atendimento WOW?, ?impulsionar as mudanças?, ?ser divertido e um pouco estranho? e ?seja aventureiro e de mente aberta?, expressões incomuns em manuais corporativos. Talvez por isso, a Zappos seja a exceção que todos gostariam de ser em um cenário povoado por produtos, serviços, atendimento e empresas pasteurizadas. Se para isso for necessário recomendar uma pizzaria para um cliente que não ligou querendo comprar, sem problemas. Se para isso for preciso ficar nove horas ao telefone com outro cliente, também não há problema. Esses momentos criam conexões emocionais que criam fãs e, como consequência, geram retorno financeiro.
Adquirida pela Amazon em 2010, quando já faturava mais de US$ 1 bilhão (a empresa não divulga mais seus números), e reconhecida mundialmente por seus altíssimos índices de satisfação de clientes (o Net Promoter Score da empresa é de 92 há cinco anos), a Zappos.com é uma varejista tão diferente que manteve a integridade de sua cultura mesmo após sua aquisição. ?É difícil acreditar, mas Tony [Hsieh, CEO da Zappos.com] e Jeff Bezos só se encontram uma ou duas vezes por ano. Quase nada mudou desde que fomos comprados?, comenta Erika Paman-Mercado, gestora de customer loyalty da empresa.
Erika e sua colega Tiffany Long, que possui o mesmo cargo na companhia, estiveram em São Paulo a convite da DirectTalk como parte da campanha Eu Amo meu Cliente, que apresenta cases positivos de relacionamento dos clientes com a marca. As duas também realizaram uma concorrida palestra no Conarec, o maior evento de relacionamento empresa – cliente do mundo, promovido pelo Grupo Padrão, que edita a NOVAREJO.
A conversa da redação da revista com as gestoras foi repleta de histórias marcantes. A própria trajetória de ambas até chegar à Zappos é cheia de momentos inusitados. Erika nasceu nas Filipinas e migrou para os Estados Unidos aos 20 anos. De 2000 a 2008, trabalhou no mercado financeiro e, como milhões de pessoas, se viu sem trabalho com a crise do subprime. Um amigo sugeriu que ela tentasse uma vaga na Zappos. ?Pensei: ?na loja de sapatos? Não sou vendedora?, nunca tinha trabalhado em call center. Mas com família para cuidar, por que não tentar??.
A Zappos tem a cultura de entrevistar as pessoas no momento em que elas se candidatam, mas no dia a procura era tão grande que ela quase ficou de fora. ?Eles pegaram 50 pessoas para entrevistar, e eu era, talvez, a 53ª. Quando ia saindo do prédio, o recrutador veio correndo e disse que tinha conseguido mais umas cadeiras e eu poderia participar. Sete anos depois eu continuo aqui?, lembra.Tiffany também nunca tinha trabalhado em atendimento ao cliente. ?Estava me formando em jornalismo e já trabalhava em uma emissora de TV em Las Vegas há mais de seis anos.
A última matéria que faltava para eu me graduar, porém, coincidia com o horário de trabalho e não houve como negociar. Saí da emissora, me formei e comecei a trabalhar no escritório de uma seguradora. Um colega era muito amigo de um recrutador da Zappos e me indicou. Dois meses depois comecei a trabalhar na empresa e amo cada segundo desses nove anos na área de customer loyalty?.
NOVAREJO convidou líderes do varejo nacional para entrevistar Erika e Tiffany. Nas respostas, mais insights sobre a cultura e o modelo de negócios de uma das varejistas que mais se destacam no mercado americano.
NICOLAU CAMARGO,
gerente-geral de atendimento do Magazine Luiza
Qual o segredo para ?empoderar? o atendente de forma que ele tenha liberdade para atender os clientes e, mesmo assim, manter o domínio sobre o negócio?
Érika Isso começa, na realidade, antes mesmo de contratarmos as pessoas. Nosso processo de seleção é baseado em valores culturais e não apenas nos aspectos técnicos. Queremos ter certeza de que as pessoas se encaixem em nossa cultura e não apenas tenham a capacidade técnica necessária. Nas entrevistas com candidatos, temos perguntas totalmente baseadas em nossos valores-chave, mas não usamos um questionário padronizado. Assim, podemos perguntar coisas como ?em uma escala de zero a dez, o quanto você se sente com sorte hoje??, ou ?que música você gostaria que estivesse tocando na sala quando você entrou??. A ideia é realmente tirar a pessoa do lugar comum, porque queremos contar com quem seja criativo e possa tomar decisões no calor do momento. E, se ela se encaixa em nossa cultura, é aceita de braços abertos desde o primeiro dia, porque sabemos que ela está aqui para servir nossos clientes e fazer o que for preciso para satisfazê-los. E, também, se as pessoas adotam a cultura da empresa, elas se tornam possessivas, ?donas? da Zappos. Não é mais a empresa do Tony [Hsieh] e, sim, a nossa. Isso traz um equilíbrio entre o ?empoderamento? da equipe e os lucros. E temos visto que dar liberdade com responsabilidade traz muito mais resultados que criar muitas estruturas de controle.
MICHEL SARKIS, CEO da Inbrands
A Zappos está se desfazendo da estrutura hierárquica tradicional com base na teoria da holocracia, em que não há cargos nem chefes. Como esse modelo influencia a relação com o cliente?
Tiffany Long Para nós, holocracia significa restruturar a empresa com foco no trabalho e não nos cargos. Normalmente, as empresas contratam pessoas para ocupar posições, mas o que a holocracia faz é colocar as pessoas em uma posição de responsabilidade sobre os projetos da empresa, independente do cargo que ocupem. É uma abordagem mais igualitária, em que a pessoa mais capacitada a realizar o trabalho fica responsável por ele.
Erika Paman-Mercado O foco é definir, para o trabalho que precisa ser feito, quem é a melhor pessoa na equipe para se responsabilizar por ele.
Tiffany O ideal é que essa forma de organização seja transparente para o consumidor, mas na retaguarda ?empodere? o colaborador. A Zappos tem como filosofia o fato de que todos devem ser capazes de tomar decisões. O que precisamos fazer para que o cliente encontre o par de sapatos perfeito para seu casamento? Em vez de perguntar para o supervisor o que fazer, queremos que o colaborador tome decisões e crie uma experiência memorável para o cliente. E ninguém irá dizer o que é preciso para criar essa experiência, nós é que temos de decidir o caminho a tomar.
Érika Claro que dentro da Zappos não vivemos no mundo ideal, e, do ponto de vista operacional, estamos ainda nos ajustando a essa filosofia. Um exemplo são nossas reuniões de trabalho, que levam mais tempo até definirmos quem fará o que em cada projeto. Uma conversa de 15 minutos às vezes dura uma hora e isso pode afetar o nível de serviço. Mas estamos dispostas a assumir esse risco agora para oferecer um atendimento ainda melhor mais adiante.
PAULO POMPÍLIO, diretor de relações corporativas do GPA
Qual é a preocupação com o retorno financeiro, para o curto, médio e longo prazo?
Tiffany Essa preocupação sempre existe. Não se tra
ta de atender o cliente sem medir consequências, mas, sim, como a Erika disse, de ter responsabilidade e sentir-se dono do negócio. O que, às vezes, faz com que a Zappos reduza seu ritmo de crescimento para manter a qualidade do atendimento, como acontecerá em 2014. Em vez de crescermos entre 30% e 36%, como tem acontecido, deveremos nos expandir mais devagar até o ano que vem, pois estamos integrando nossa infraestrutura com a da Amazon. Poderíamos continuar buscando um crescimento acelerado, mas a experiência dos clientes seria sacrificada e isso nós não queremos fazer. Nosso foco está sempre na experiência oferecida, não importa o que aconteça. E isso porque os clientes que passam mais tempo em contato conosco compram mais, porque sentem que estão sendo cuidados. Assim, há uma argumentação financeira que justifica essa posição de cuidar primeiro da experiência do cliente.
JORGE STRASSBURGER, diretor corporativo do Grupo Paquetá
Qual a característica que mais identifica a cultura da empresa?
Érika Para cada pessoa da Zappos você terá uma resposta diferente, porque a cultura da empresa é muito diferente. Para mim, a característica mais marcante é a diversidade. É muito diversa no sentido de que, não importa de que parte do mundo você venha, a cultura te influencia e você pode também influenciar essa cultura. É sensacional que a Zappos não nos limite e permita que sejamos nós mesmos, independentemente de nossa origem.
Tiffany É difícil definir apenas uma característica. A Erika falou sobre diversidade, e concordo com ela, mas para mim o que define a empresa são as conexões. Temos os chamados ?4 Cs?, quatro grandes focos, e um deles é a Comunidade. Queremos ser uma empresa que conecte nossa comunidade, a inspire e ajude-a a crescer. É por isso que nos mudamos para o centro de Las Vegas, por exemplo.