Nos últimos dias, o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor ficou estarrecido com a publicação no Diário Oficial da União do decreto 9.360/2018. Em linhas gerais, o texto define uma série de novas atribuições a diversos departamentos e secretárias dentro do guarda-chuva do Ministério da Justiça. E um deles é a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon).
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Publicado no último dia 8, o decreto começaria a valer apenas a partir do próximo dia 22. No entanto, existe a possibilidade da norma sequer chegar a essa data. Hoje, há uma grande pressão contrária ao decreto e existiria até mesmo uma promessa do alto escalão do Ministério da Justiça de retornar o decreto anterior. E essa retomada ao status quo começaria pela principal mudança prevista no decreto: o nome da Senacon.
Fim da Senacon?
O decreto do último dia 8 altera o nome da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) para Secretaria Nacional das Relações de Consumo. A principal queixa é que a mudança alteraria a “substância” que deu origem a Senacon: no caso, o consumidor. Ao mudar a nomenclatura para “relação de consumo”, especialistas entendem que isso poderia ser interpretado como a inclusão no debate de outros players inseridos na linha do tempo da relação de consumo – inclusive o fornecedor. E que mal há nisso?
Há quem defenda que isso poderia mudar a natureza da Senacon, que é proteger exclusivamente o consumidor – o hipossuficiente da relação de consumo. Ao incorporar outros integrantes da relação de consumo, o consumidor dividiria a atenção da secretaria com fornecedores, por exemplo. Algumas entidades entendem que esse equilíbrio causaria, ironicamente, um desequilíbrio na força que o consumidor tem hoje na Senacon.
“Há uma questão jurídica importante. O decreto é inconstitucional porque atribui para a nova secretaria das relações de consumo algo que não está previsto na Constituição. A defesa do consumidor nasce de alguns mandamentos constitucionais. Temos o artigo 5º, inciso 32 e artigo 170, inciso 5º, ambos da CF. Nos dois casos, fala-se apenas na defesa do consumidor, pois esse é o sujeito de direito escolhido pela lei para ser protegido. A legislação fala em uma defesa do ‘consumidor’ e não uma proteção das relações de consumo. Por isso, entendo que há inconstitucionalidade do decreto”, disse uma influente autoridade da defesa do consumidor.
De fato, a Constituição é clara sobre qual objeto que deve ser protegido. O artigo 5º, inciso 32, diz: “O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Já o artigo 170 diz que “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: soberania nacional, propriedade privada, função social da propriedade, livre concorrência e defesa do consumidor.
Entidades na bronca
Esse argumento de inconstitucionalidade esteve presente no discurso de diversas entidades que defendem o consumidor -e uma delas é a ProconsBrasil. Em manifesto assinado pelo presidente da entidade, Paulo Miguel (atual diretor da Fundação Procon São Paulo) e a vice da entidade, Sofia Martini Vial (diretora do Procon de Porto Alegre), a entidade afirma que a mudança está “afrontando de forma clara e direta os artigos 5º, inciso 32, e 170, inciso 5º da Constituição Federal, fazendo-se necessário sua imediata revogação, voltando-se ao status quo ante (anterior)”, diz o texto.
A entidade do Ministério Público orientada a defesa do consumidor também se manifestou contra a medida. Na avaliação da Associação Brasileira do Ministério Público do Consumidor (MPCon), a proteção prevista na CF e que deu origem ao Código de Defesa do Consumidor (CDC) não se prolonga a todos os agentes da relação de consumo. “É exatamente por força das normas constitucionais que não dizem ser direito fundamental previsto no artigo 5º, inciso 32”, afirma o manifesto da presidente da MpCon, Alessandra Garcia Marques, integrante do MP do Acre.
Modernização
De acordo com a Senacon, a ideia não era retirar direitos, mas modernizar o órgão. Em nota publicada no jornal O Globo, o órgão informou que “a troca acompanha as transformações nas relações de consumo no Brasil e vem para harmonizar e modernizar o tratamento dado ao tema”. O órgão, no entanto, garante que o consumidor continuará assistido pelo poder público. “O consumidor, que é a parte mais vulnerável dessa relação, continuará sendo amplamente protegido pelo estado, conforme manda a Constituição Federal e de acordo com o Código de Defesa do Consumidor (CDC)”, disse.
Agora, no entanto, o governo admite que os argumentos apresentados pelas entidades tem amparo legal e já avalia a revogação do novo nome. Aliás, o assunto já estaria sendo analisado pelo poder público. No último dia 9, Claudenir Brito Pereira, secretário adjunto do Ministério da Justiça, reuniu-se com integrantes de uma entidade defesa do consumidor para discutir justamente esse assunto. Após o encontro, Pereira prometeu levar o assunto para o ministro Torquato Jardim, que, poucas horas depois, já teria concordado com a defesa contrária ao decreto apresentada por integrantes da defesa do consumidor. Mais do que isso, ele levaria o assunto para o presidente da República, Michel Temer. A decisão deve sair nos próximos dias.
Nas redes sociais, alguns integrantes de Procons já comemoram a retomada da Senacon.
Mas é apenas o nome?
Evidentemente que o debate não se refere ao nome da Senacon. Existem questionamentos sobre dois incisos do artigo 15 do decreto 9.360/ 2018. Em ambos, as entidades afirmam que a nova Senacon perderia poderes para proteger o consumidor.
O primeiro ponto de inflexão (e de alegada perda de direitos) está prevista no inciso 8 do artigo 15. Diz o texto: “Aplicar, ouvida a Consultoria Jurídica, as sanções administrativas privadas previstas nas normas de defesa do consumidor”.
Na avaliação do MpCon, esse artigo retiraria o poder e a autonomia de fiscalização da secretaria. “Ademais, segundo o artigo 15, inciso 8º, do decreto, a Secretaria Nacional de Relações de Consumo, diferentemente da Senacon, que tinha poder de fiscalizar, hoje não tem mais, sendo que somente aplicará sanções depois de ouvir a consultoria jurídica”, afirma o manifesto da entidade.
Outra alteração está prevista no inciso 13, do artigo 15. Em linhas gerais, a Senacon perderia a sua autonomia na celebração de Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) com fornecedores que descumprem as leis que protegem o consumidor. O texto diz o seguinte: “Celebrar, ouvida a consultoria jurídica, compromissos de ajustamento de conduta, na forma da lei”.
Ao que tudo indica, o decreto que altera o nome e algumas atribuições da Senacon será revisado ou será totalmente revogado. Aos consumidores e aos seus defensores, resta esperar o que virá de um novo decreto.