“Num futuro não tão distante, teremos um sistema centralizado e outro descentralizado, coexistindo lado a lado.” Esta frase, retirada do livro Snow Crash (ou Samurai: Nome de Código), de Neal Stephenson, publicado em 1992, parece ter previsto o mundo em que vivemos hoje.
No universo descrito por Stephenson, o poder centralizado se manifesta de diversas formas: desde corporações gigantes que dominam mundos virtuais até governos autoritários que impõem sua vontade sobre os espaços físicos. Embora muitas vezes tragam eficiência e estabilidade, esses sistemas também podem sufocar liberdades individuais e restringir a autonomia das pessoas. Soa familiar, não é?
Em contrapartida, os sistemas descentralizados se erguem como uma força de resistência. São redes, comunidades e tecnologias que empoderam indivíduos, desafiando o poder centralizado e abrindo espaço para a inovação. Exemplos disso são as blockchains, as redes peer-to-peer e as comunidades autônomas, que priorizam a liberdade, a colaboração e o pertencimento. São elas que desafiam hierarquias e remodelam o modo como nos relacionamos com o poder.
Na semana passada, na primeira edição do SXSW em Londres, ficou notória a aposta em torno da descentralização, e seus componentes fundamentais na tecnologia. A Internet aberta (Open Internet), o código aberto (Open Source) e a Web3 são exemplos dessa força descentralizadora que conecta tecnologia, economia e comunidades, criando novos modelos de governança e participação cidadã.
A proposta dos Estados em rede – onde o poder é distribuído por meio de plataformas digitais e redes sociais – nos convida a repensar fronteiras. Nessa visão, o poder não se concentra mais em poucos, mas se distribui, tornando-se mais transparente, flexível e participativo.
Em comum, essas iniciativas compartilham três pilares:
- Liberdade e Descentralização: a ideia de liberdade de uso e de colaboração, descentralizando poder e propriedade;
- Colaboração Comunitária: comunidades que desenvolvem, validam e aprimoram os projetos;
- Transparência: acesso aberto ao conhecimento, ao código e à infraestrutura, promovendo confiança.
Internet Aberta: do controle à liberdade de pensamento
Muitos painéis destacaram a Open Internet como um espaço democrático que favorece a liberdade de pensamento, onde qualquer pessoa pode criar, acessar e compartilhar informações livremente, sem barreiras arbitrárias ou controle. Quando você navega por sites, assiste a vídeos, ouve podcasts ou joga online, está imerso na internet aberta. Em contrapartida, há os chamados Walled Gardens – plataformas como Meta, Google, TikTok, X – que impõem barreiras, controlam dados e moldam nossa experiência digital.
No painel de Amit Kotecha, da Quantcast, ele desafiou o “efeito manada” das marcas que investem 72% dos investimentos publicitários nesses jardins murados, mesmo quando 70% do tempo das pessoas é gasto na Internet Aberta. Para ele, é hora de reequilibrar: “Se mais de 50% do seu investimento está nos Walled Gardens, você está deixando dinheiro na mesa.” Um caso de sucesso que Kotecha citou foi o da área B2B da Microsoft. Essa importante linha de negócio transferiu seus orçamentos dos Walled Gardens para a Internet Aberta, e viram um aumento de 40% ao longo do ano nos leads qualificados enviados para a equipe de vendas. Eles não mudaram o quanto estavam gastando, apenas transferiram os orçamentos de um lugar para outro. “Para a maioria de nós, a etapa de consideração, da descoberta de produtos acontece na internet aberta”, argumenta Kotecha.
O Substack, a mais nova onda dos apaixonados pela escrita, é uma plataforma peer-to-peer, que funciona sem intermediários, a partir de um modelo em que o criador é pago diretamente pelo usuário. Segundo o seu cofundador, Hamish McKenzie, o Substack só ganha se o criador/escritor ganha, e é isso que desenvolve o senso de posse, de pertencimento, graças à relação direta com as pessoas que realmente se importam com o que você está produzindo, o seu conteúdo. Ela não é a única que utiliza este modelo, mas inaugurou a forma como lemos newsletters hoje, evoluindo o formato dos blogs.
Código Aberto: da opressão do algoritmo à liberdade de escolha
“As grandes plataformas escolhem por você, mas você pode escolher o código aberto.” Com essa frase, Laura Chambers, CEO da Mozilla, reforçou a importância de apostar por opções regidas pelo código aberto, que celebram a liberdade de escolha, já que qualquer pessoa pode acessar, modificar e redistribuir o software. O navegador Firefox, por exemplo, disputa espaço com gigantes como Chrome e Safari, mas carrega o propósito de devolver o controle às pessoas.
Além do Firefox, WordPress, Linux e a rede social BlueSky são símbolos dessa visão: transparência, colaboração e confiança.
“Se vocês querem a sociedade em que seus filhos e netos vão crescer, escolham o código aberto hoje”, comentou Matt Mullenweg, cofundador do WordPress.
Para Mullenweg, o código aberto é a ideia mais poderosa dos últimos anos, já que essencialmente está baseada na liberdade de expressão: “Eu não posso dizer como as pessoas devem usar o WordPress. E isso é importante, afinal, são algoritmos que hoje moldam nossas escolhas, dirigem nossos carros, preparam nossa comida e até treinam nossos filhos.”
Descentralizar para democratizar
A Web3 também foi amplamente discutida em diferentes painéis no evento, sendo vista como motor de democratização, graças aos seus elementos baseados em propriedade descentralizada, economia peer-to-peer e confiança sem intermediários. As criptomoedas, hoje um setor avaliado em US$ 2 trilhões, ainda lutam por regulamentação, mas têm uma missão: democratizar o acesso financeiro. Keith Grose, da Coinbase, resumiu bem: “Nossa missão é oferecer liberdade econômica para a sociedade.”
Neste sentido, uma das maiores atrações do evento, o astro Idris Elba, apresentou um dos seus empreendimentos mais recentes, a Akuna Wallet – uma carteira digital baseada em blockchain projetada para democratizar o acesso financeiro dos criadores ganeses à economia criativa global.
Sua missão é permitir que os criadores alcancem prosperidade financeira a longo prazo. Inicialmente está focada em garantir uma forma direta de remuneração aos criativos de Gana e o objetivo é ampliá-la a toda a indústria criativa.
E, finalmente, a moeda digital é a aposta do Reino Unido para recuperar o protagonismo, já que foi o berço do mundo financeiro no passado. O Banco da Inglaterra lançou a plataforma experimental, Digital Pound Lab, um espaço para a indústria testar casos de uso e entender os potenciais modelos de negócios para a libra digital.
Centralização e Descentralização:
Por mais que a descentralização seja a grande aposta para transformar o mundo, a centralização também tem seu papel – principalmente no nível micro, como integração de serviços para simplificar a vida das pessoas. Um exemplo é o Beeper, adquirido pelo WordPress, que integra vários aplicativos de mensagens em um só. E a Deaku, startup presente no evento, que conecta ferramentas de mensagens, planejamento e vídeos em um único espaço de trabalho colaborativo.
A descentralização não é apenas uma promessa tecnológica: ela é uma força cultural, que reflete nosso desejo coletivo de ter voz, participação e pertencimento. E, nesse processo, cabe a nós – profissionais, empreendedores e cidadãos – escolhermos ativamente onde queremos colocar nossa energia, nossos investimentos e nosso tempo.
Talvez o maior desafio daqui para frente não seja apenas adotar novas tecnologias, mas cultivar uma mentalidade de descentralização: mais colaborativa, mais transparente e mais democrática. Afinal, é nessa intersecção entre o poder centralizado e as redes descentralizadas que definiremos o futuro que queremos habitar.

Graziela Di Giorgi é fundadora da The Human Rise, autora do livro “O Efeito Iguana” e colaboradora especial do portal Consumidor Moderno.