A publicação de um decreto presidencial no Diário Oficial da União, no último dia 10 de outubro, acentuou as diferenças que já existiam entre integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC) e a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon). O alvo da discordância da vez é a norma de número 10.051/2019, que criou o Colégio de Ouvidores do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (Ouvcon).
Em linhas gerais, a norma criou um grupo para acompanhar e propor mudanças nos trabalhos dos Procons pelo País, sejam eles estaduais ou municipais. Por meio do ouvidor, o consumidor poderá elogiar, sugerir ou até reclamar do serviço prestado pelos órgãos. Mais do que isso, essa interação ficará registrada em um banco de dados e essas informações poderão ser usadas na formulação de políticas públicas voltadas para o aprimoramento da defesa do consumidor no País.
Esse tipo de acompanhamento seria feito por meio eletrônico e sem custo para os Procons. No entanto, cada órgão de defesa do consumidor precisaria aderir voluntariamente ao controle estatal federal da ouvidoria – que, a propósito, será formado por um integrante a Ouvidoria-Geral do Ministério da Justiça e Segurança Pública e outro da secretaria. No entanto, a lei prevê a possibilidade de incluir de outros representantes. Veja o texto na íntegra.
Controle social
A medida, segundo a SENACON, representa um avanço nos mecanismos de aprimoramento dos Procons. No entanto, um numeroso grupo de integrantes do Sistema Nacional do Consumidor (SNDC), composto por Procons, membros do Ministério Público, advogados, entidades e representantes do poder público, afirma que a medida, na verdade, cria um mecanismo que nunca foi discutido com os representantes da defesa do consumidor. Mais do que isso, o decreto utiliza uma expressão que preocupa as entidades que protegem os consumidores: controle social. A expressão surge em três momentos distintos do decreto, sendo que uma delas está presente no artigo segundo da norma:
“O Colégio de Ouvidores do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor é destinado a propor diretrizes para o controle social das atividades desempenhadas pelos órgãos e pelas entidades que compõem o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor”.
Uma das críticas sobre o assunto foi feita por Mariè Lima Alves de Miranda, presidente da Comissão Especial de Defesa do Consumidor do Conselho Federal da OAB. Em um manifesto publicado no site da Ordem, ela afirma que a criação do decreto sugere a ideia de que os órgãos da administração pública e as entidades civis de defesa do consumidor estariam promovendo “atos ilegais ou arbitrários”, o que demandaria a necessidade de uma ouvidoria.
O mesmo comunicado de Mariè diz ainda que o “controle social” mencionado no decreto seria algo mais grave: uma censura disfarçada. “No site da CGU (Controladoria Geral da União), aprende-se que o ‘controle social’ é instrumento de ‘empoderamento’ do cidadão sobre o uso do dinheiro público e não instrumento de controle (corregedoria) da União sobre os entes federados ou (controladoria ou censura disfarçada) da atuação das associações de defesa dos consumidores”, explica.
Pacto federativo
O presidente da ProconsBrasil (entidade que congrega representantes lideranças desse órgão de defesa do consumidor), Filipe Vieira, também reagiu contra a medida por meio de um comunicado. Ele afirma que o controle social fere o chamado Pacto Federativo, que é uma forma de organização do Estado garantido por lei e que estabelece, entre outras coisas, os limites de atuação da União, estados e municípios.
“Desta forma e pelo Pacto Federativo, não seria possível nos submetermos ao controle social – na forma como pretendida no artigo segundo do discutido Decreto –, visto que os órgãos se submetem a controle próprio das suas esferas de poder e através de suas respectivas ouvidorias (existentes nos estados e municípios)”, explica.
ProconsBrasil e OAB afirmam que o decreto tem outras formas de ilegalidade e, por conta disso, já pediram sua revisão. “Por tudo, pugnamos pela não formação do referido Colegiado sem que pudesse ser discutida a reforma do malfadado Decreto nº 10.051/19, mormente (ou sobretudo) suprimindo os traços de controle social, para que se previsse, por exemplo, o caráter consultivo e recomendatório do pretenso Colegiado, desta feita sendo facultativa e voluntária a sua adoção ao não pelos órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor”, explica. Veja o texto na íntegra da entidade: Ofício nº 036-2019 (Ao MJSP – Sobre Decreto das Ouvidorias – v.3) (1)
“Expressão infeliz”
Em entrevista ao site da revista Consumidor Moderno, o secretário nacional do Consumidor, Luciano Benetti Timm, descartou o suposto viés antidemocrático da medida. Na verdade, segundo ele, o objetivo foi de apenas incluir os Procons dentro de um sistema de ouvidorias eletrônica da CGU, conhecido como o eOuv.
“É muito útil, pois permite o cidadão se manifestar. Ele (consumidor) pode reclamar, denunciar e até elogiar. Além disso, o Procon que estiver cadastrado, pode tirar um BI (Business Intelligence), o que pode ajudar na gestão do órgão. Hoje, por exemplo, a Senacon está cadastrada.”
Timm também admite que o uso da expressão “controle social” foi infeliz, mas afirma que a finalidade não está relacionada a censura ou qualquer outra postura que remeta à ditadura. “É que tem lá uma expressão infeliz, mas que é usada pela CGU: o controle social. Mas é preciso ler a partir da definição estabelecida pela CGU. Bastaria que o colégio de Procons, que possui 27 membros, criasse uma norma interpretativa sobre a expressão controle social. Não para em pé juridicamente essa irresignação dos Procons. É a expressão que a CGU usa, quer a gente goste ou não”, afirma.
Pelo texto presente no site da CGU, controle social seria: “Cada cidadão possui fundamental importância na tarefa de participar de gestão e de exercer o controle social do gasto público. Com a ajuda da sociedade, será mais fácil controlar os gastos do Governo Federal em todo Brasil e garantir, assim, a correta aplicação dos recursos públicos. É necessário promover entre as novas gerações o debate sobre ética, transparência pública, controle social e cidadania, despertando desde a infância o compromisso com o bem-estar coletivo. A CGU acredita que por meio da educação é possível conscientizar crianças e jovens sobre o papel que cada um tem na construção de uma sociedade mais justa e livre de corrupção”.
Pontos positivos e negativos
Entidades da sociedade civil organizada têm acompanhado à distância esse aumento da tensão entre Procons e SENACON a partir do decreto das ouvidorias. Eles temem por uma repercussão negativa na defesa do consumidor, com cada órgão seguindo em uma direção diferente. Ao mesmo tempo, afirmam que o decreto possui pontos positivos.
Segundo Vítor Morais de Andrade, advogado da LTSA e vice-presidente da Abrarec (Associação Brasileira das Relações Empresa Cliente), é preciso respeitar a percepção dos Procons sobre o decreto. “Talvez tenham colocado expressões que deixaram dúvidas sobre a real extensão do impacto do decreto, como o uso de ‘controle social’. Ele foi fonte de dúvidas sobre a sua interpretação, abrangência e extensão por parte dos Procons. Mas me parece que o decreto tem aspectos positivos. Foi proposto um modelo de aprimoramento de atuação das ouvidorias e, portanto, um olhar para o cidadão, que poderia contar com as ouvidorias dos órgãos do sistema nacional de defesa do consumidor como elemento eficiente para esse diálogo para pedidos”, explica.
Nos próximos dias, os debates sobre o decreto podem ganhar novos capítulos a partir do pedido de revisão feito pela ProconsBrasil e que já foi encaminhado ao ministro da Justiça, Sérgio Moro. Por ora, a tensão entre Procons e Senacon poderia ser resumida na frase do iluminista milanês e um dos mais importantes pensadores do direito penal moderno, Cesare Beccaria, e que foi citada por Mariè em seu manifesto.
“Que espécie de governo é aquele onde quem reina suspeita em todo o seu súdito um inimigo e é constrangido, em nome da tranquilidade pública, a retirar a tranquilidade de cada um?”, disse.
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