As informações são muitas. Verdadeiras e falsas. A pandemia de coronavírus tem provocado uma difusão, talvez mais rápida do que a da própria doença, de números, cuidados e orientações. Muitas dessas informações envolvem dados particulares de pacientes – mais do que isso, dados sensíveis, relacionados à sua saúde, que possuem tratamento diferenciado na legislação.
Algumas dessas informações que envolvem indivíduos ficaram famosas. Quem não ouviu falar do tal “paciente da Itália” que fez uma festa em casa e contaminou amigos e parentes? Ou do infectado da XP Investimentos? Como se não bastasse, diversos famosos estão sendo detectados com a Covid-19 e o próprio presidente Jair Bolsonaro esteve sob suspeita.
No escopo da privacidade dos dados, até onde vai o limite da divulgação de informações pessoais? Em que medida o interesse público de se conter uma epidemia entra em choque com o direito à privacidade?
Relevância x necessidade
Para o coordenador de pesquisa do Data Privacy Brasil, Rafael Zanatta, os dois parâmetros a serem observados são a relevância de determinada informação para a saúde pública e a necessidade de identificação do portador dessa informação.
“Uma das bases legais é a proteção da vida e da incolumidade física de terceiros. Além disso, é possível tornar um dado de acesso público mediante clara identificação de interesse público”, explica.
Para o representante do Senado no conselho da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, Fabrício da Mota Alves, a circunstância especial abre algumas possibilidades para o manejo de informações pessoais, mas é importante que seja seguido um protocolo, a fim de evitar uma “violação dos direitos fundamentais”.
“Como dados médicos são considerados sensíveis, a regra geral seria a proibição de seu manejo. Contudo, situações como a proteção da vida, da saúde e o interesse público dão base legal a esse tratamento”, argumenta.
Existe uma base legal para o tratamento desses dados médicos, mesmo sem o consentimento do titular, para que o país evite a propagação da doença. O importante é que exista uma separação entre as informações cruciais para a saúde pública, que devem ser conservadas e manejadas, e as informações pessoais, que devem ser processadas de maneira anônima”, diz Rafael Zanatta
O que diz a lei
O governo federal, com a chancela dos ministérios da Justiça e da Saúde, publicou no dia 6 de fevereiro deste ano a lei 13.979, que discorre sobre as determinações nacionais por conta da pandemia do coronavírus.
No que se refere à proteção de dados, a lei especifica que “é obrigatório o compartilhamento entre órgãos e entidades da administração pública de dados essenciais à identificação de pessoas infectadas, com a finalidade exclusiva de evitar sua propagação”.
O texto também estende a difusão de informações ao setor privado quando solicitado e diz que o Ministério da Saúde manterá os dados “públicos e atualizados”, resguardando “o direito ao sigilo das informações pessoais”.
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que deve entrar em vigor no Brasil em agosto, trataria o tema da mesma maneira, de acordo com Zanatta.
“Uma das bases legais da LGPD é o interesse público claramente identificado. Nesse caso, o dado pessoal pode ser divulgado, desde que anonimizado”, diz.
Para Alves, é complicado que o Brasil ainda não tenha nenhuma lei específica sobre proteção de dados em vigor, pois isso dificulta as ações e interpretações.
“Na Europa, por exemplo, os governos já emitem guias com diretrizes para os profissionais responsáveis sobre como lidar com o coronavírus e ainda assim respeitar a privacidade dos cidadãos”, observa.
Bolsonaro e famosos
Em relação ao quadro clínico de pessoas com grande importância para a vida pública, como o presidente Jair Bolsonaro, os dois especialistas concordam que existe uma justificativa plausível para a divulgação das informações. Para Zanatta, o chefe do Executivo tem “compromissos formais com o país”, enquanto para Alves sua saúde é uma questão de “defesa nacional”.
Sobre pessoas famosas, quando o próprio paciente divulga seu diagnóstico em redes sociais, não há muito que fazer. Contudo, se seus quadros forem revelados contra sua vontade, isso configura uma violação de privacidade. Alves diz que os famosos, “apesar de terem uma vida mais exposta”, têm o mesmo direito à privacidade. Já Zanatta diz que um vazamento sem autorização configura, nesse caso, uma violação à ética médica e às leis.
Meio social dos infectados
“O segundo caso confirmado de coronavírus do país é de um funcionário da corretora XP Investimentos, que fica na Avenida Brigadeiro Faria Lima…”. A frase revelando o local de trabalho de um dos infectados, logo no início da chegada da doença ao país, se espalhou pelos jornais e sites. Enquanto gerou pânico nos que circulam pelo novo centro financeiro de São Paulo, provocou a indignação daqueles que consideravam “desnecessário” expor o meio do convívio dos doentes. “É uma informação que não agrega à questão da saúde pública”, argumenta Alves.
Sobre pessoas famosas, quando o próprio paciente divulga seu diagnóstico em redes sociais, não há muito que fazer. Contudo, se seus quadros forem revelados contra sua vontade, isso configura uma violação de privacidade. Fabrício da Mota Alves diz que os famosos, “apesar de terem uma vida mais exposta”, têm o mesmo direito à privacidade. Já Rafael Zanatta diz que um vazamento sem autorização configura, nesse caso, uma violação à ética médica e às leis.
Já para Zanatta, o dado não é tão irrelevante assim. “Saber o local de trabalho é importante para as estratégias de combate ao contágio, tano para quem trabalha no mesmo local e região como para quem utiliza a infraestrutura para se chegar até lá”, alega.
Apesar desse entendimento, ele faz uma ressalva: a lei não consegue especificar os casos específicos de uso das informações, ou seja, a interpretação do que é ou não crucial para a saúde pública “fica a cargo das autoridades sanitárias”.
Outros casos
No episódio do primeiro infectado do Brasil, que voltou da Itália e contaminou parentes e amigos em uma festa, não há problema em divulgar as circunstâncias de transmissão desde que os indivíduos não sejam identificados, segundo Zanatta.
Ele argumenta o mesmo para o paciente do Rio de Janeiro cujo estado de saúde, considerado grave, foi divulgado nesta segunda-feira (16).
“Se não há identificação das pessoas, esses ocorridos servem para que a população tenha consciência da gravidade da pandemia e das formas de contágio”, diz.
Alves, por sua vez, critica um caso de um paciente em Santa Catarina que, segundo o especialista, ficou sabendo que estava infectado pelo coronavírus por meio da imprensa.
“Houve um vazamento de alguém do laboratório antes mesmo de a informação ter sido passada ao infectado, que é o titular da informação”, critica.
Possíveis violações
Os dois especialistas alertam também para situações em que podem ocorrer violações à privacidade dos dados, sejam por interesses escusos ou por descuidos pessoais. Zanatta dá o exemplo de um possível uso, por parte de hospitais e planos de saúde, da base de infectados para estabelecer “grupos de risco”.
“O uso dos dados pessoais tem que trazer benefícios para a população. A interpretação a se fazer é se a informação é benéfica para a saúde pública ou para determinado negócio. A lei determina que a exploração dos dados seja exclusiva para evitar a propagação da Covid-19”, explica.
Já Alves faz a ressalva aos profissionais que atuam na área de saúde ou que estejam de alguma forma vinculados à pandemia.
“O respeito à lei deve ser mantido. As pessoas devem estar atentas a isso para não vazarem os dados de saúde pública para fins alheios, não mandar esse tipo de informação para amigos ou contatos do Whatsapp”, alerta.
Ele ainda explica que, na Europa, existe a recomendação para as empresas de que os nomes de funcionários com coronavírus não sejam divulgados internamente. “A empresa pode apurar, fazer uma investigação, falar com possíveis infectados individualmente, mas sem abrir para todos e sem criar constrangimentos”, completa.