* Não contém spoilers
Ele tentava trabalhar como palhaço, cuidar da mãe, imaginar uma forma de se realizar profissionalmente e descobrir afeto em meio a uma vida repleta de vazio. Há muitos anos, Alan Moore, genial – assim como arredio e misantropo – escritor, delineou uma “origem” para o mais complexo, visceral, brutal e indefinível vilão dos quadrinhos, o Coringa.
Em uma HQ excepcional e memorável – A Piada Mortal (Killing Joke, no original em inglês), Moore explorou em paralelo o quanto uma vida desprovida de significado pode perder o sentido em algumas horas, diante de uma série de gatilhos que podem detonar um processo incontrolável de insanidade.
Em uma via, o leitor acompanhava a transformação de um comediante pavorosamente inseguro e sem talento no violento, imprevisível e caótico Coringa.
Na mesma narrativa, o leitor acompanhou a via crúcis que o mesmo Coringa oferece a uma pessoa de inabalável retidão moral e força psicológica, como um Jó dos tempos modernos, para comprovar a tese de que todos podem se converter à loucura diante de uma sequência de fatos que atentam contra a lógica e espalham desespero e violência em doses monumentais.
O objetivo de Moore em A Piada Mortal era discutir a questão das identidades, a sanidade e a loucura, a opressão que sociedades exercem sobre pessoas que se sentem profundamente deslocadas em qualquer ambiente e as consequências imprevisíveis que esse processo traz. Indo além, o escritor britânico queria nos fazer refletir se qualquer pessoa, mesmo aquela de mais sólida força mental poderia se deixar tomar pela insanidade.
O diretor Todd Phillips, conhecido pelas sandices de “Sem beber, não case”, disse que não se baseou nos quadrinhos para criar “Coringa”, o filme. Não precisou. A saga escrita por Alan Moore foi tão poderosa que seu argumento central disseminou-se pela cultura popular e foi incorporado por muitos artistas talentosos – Todd Phillips entre eles.
O diretor encontrou em Joaquin Phoenix um expoente magnífico para levar às telas um filme perturbador, inquietante, amargo e memorável sobre a perda da identidade, diluída por uma rotina massacrante e sem sentido vivida por um certo Arthur Fleck, o alter-ego que virá a se revelar como Coringa.
O filme trabalha em camadas, cada qual propondo um gatilho que fará o magérrimo, inseguro, torturado e frágil Arthur se transmutar no colossal vilão também conhecido como “Palhaço do Crime”.
A trama já foi revelada em centenas de artigos e críticas disponíveis em blogs, sites, jornais, revistas e vídeos. Mas pouco se falou sobre o mal-estar que Coringa explicita, escancara para seu público: Arthur Fleck é um rosto na multidão, e vive sem perceber que a maquiagem que ostenta em sua miserável carreira de palhaço de rua ou de animador de crianças em hospitais, representa, na verdade, a insensatez com que ele enxerga o mundo.
Na pele famélica de Arthur, o Coringa não existe, ele mesmo “inexiste”, é nada, é ninguém, um saco de pancadas que sobrevive a cada dia esperando por uma chance de ser notado.
Sua melancolia é infinita, seu rosto é um vazio, sua existência é depressão. Subitamente, ele “descobre” que sob a pele do palhaço há poder, há sentido, e há, sobretudo, audiência. Todo o desespero de uma existência vã transforma-se em energia vital para que uma multidão troque sua personalidade por uma máscara onde a violência é um ritual que tem no Coringa sua expressão máxima, um ídolo que ousou combater o poder, a democracia, as instituições.
Claro, o Coringa é um narcisista, profundamente melancólico e possível, que se regozija com sua loucura, que exulta com sua capacidade de subverter regras e galvanizar a atenção das pessoas que enxergam nele um escoamento para suas vidas sem sentido.
Em um mundo onde tantos se sentem injustiçados – e ainda que sejam, com razão e com pesar – o Coringa representa o achatamento do indivíduo e o triunfo de um coletivismo que não percebe que empodera justamente quem abre mão da identidade, da racionalidade para fazer da loucura, da anarquia e do caos um modo de vida.
Nada diferente de nossa realidade, onde influenciadores são seguidos cegamente, onde a polarização dá as cartas a partir de informação comandada por algoritmos, sem espaço para a reflexão, para a nuance, para o meio-tom.
Ao assumir a persona do Coringa, Arthur Fleck – ou qualquer um de nós – deliberadamente abre mão de sua personalidade, de seu rosto, da razão e mesmo da emoção. Nada mais atual, neste mundo em que nenhum chapéu que usamos – pais, mães, amigos, profissionais, filhos, filhas, homens, mulheres, gays, brancos, negros, índios – parece nos definir.
Quando nos olhamos no espelho, não nos enxergamos como somos, mas sempre o que almejamos ser e como desejamos ser vistos e compreendidos.
Essa era de perda de identidade e de busca desesperada por auto-expressão é o triunfo do não-ser. Esse não-ser é o que gostamos de ver no espelho, para que possamos ser notados, vistos.
A vida despercebida é insuportável demais, árida demais, real demais, melancólica demais. O Coringa é, assim, uma versão distorcida de uma distorção: o mito de Narciso, que não se admira pelo que é, mas sim pelo que nega ser para desprezar qualquer um, sem distinção.
Esqueça o personagem. O Coringa está por aí, em praticamente todos os lugares, à espera de um gatilho para trazer caos ao mundo. E acredite: estamos criando gatilhos para a insanidade como nunca antes na história.
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