Vou deixar um pouco de lado minhas provocações, agora nas férias, para escrever sobre a representação de pessoas com deficiência no cinema! A ideia é conversarmos sobre filmes que abordam a temática da deficiência ou que tenham personagens com deficiência entre seus protagonistas.
Algumas dessas obras têm o poder de não apenas ampliar a exposição da diversidade humana nas artes, mas, também, de criar diálogos mais amplos sobre os desafios, as conquistas e as singularidades dessas vidas pouco compreendidas. Conhecer esses trabalhos, de ficção ou não, pode contribuir para melhorar o entendimento específico sobre as deficiências retratadas, bem como para sensibilizar e conscientizar sobre o estranhamento e o preconceito que ainda maculam nossas relações sociais.
No campo cinematográfico, há um sem-número de filmes que tratam de pessoas com deficiência, de seus universos pessoais, e que valem muito a pena serem assistidos, alguns como material quase que didático, outros tantos verdadeiras joias, para serem curtidas muito além do engajamento político-comportamental!
Com estes pressupostos em mente, trago hoje uma pequena seleção de clássicos! Muito longe de esgotarmos as opções existentes, ofereço minha lista de favoritos, que vão fazê-la ou fazê-lo chorar, rir, se emocionar, se revoltar com o preconceito latente, conhecer melhor e aprender, mas, principalmente, se divertir nessa temporada de verão.
Os meus preferidos, adorados, cultuados e sempre recomendados são “As Sessões” e “You Don’t Know Jack”, maravilhosos em suas profundidades temáticas. O primeiro, engajado e sensível, conta a história verídica de Mark O’Brien, que, na Berkeley dos anos 70, paralisado do pescoço para baixo, busca descobrir sua sexualidade. Destaque para a atuação visceral de Helen Hunt, em uma de suas melhores performances!
O segundo é um quase-documentário. Estrelado por Al Pacino, trata de um período da vida do médico americano Jack Kevorkian, conhecido como “Dr. Death”. Pesado e complexo, discute o suicídio assistido, tema ainda muito polêmico, explorando os limites da ética, das leis vigentes e o respeito a escolhas individuais para preservação da dignidade frente ao sofrimento e à morte!
Assista e, depois, me conte suas impressões!
No mesmo patamar de qualidade artística, também contando com a maestria de Al Pacino, indico “Perfume de Mulher”, no qual a cegueira não representa uma deficiência, mas, sim, mais um recurso poderoso do personagem principal para impor seu domínio intelectual. Imperdível!
Pertencente a uma outra categoria, menos profundo, mas não por isso menos impactante e divertido, coloco o blockbuster francês “Os Intocáveis”, que nos faz rir e chorar, chorar e rir, com o relacionamento de um milionário tetraplégico com seu cuidador acidental, protagonizado pelo impagável Omar Sy, que até eu gostaria de ter me auxiliando!
Destaco, também, entre os filmes que considero mais emblemáticos, a primeira versão de “Avatar”! Para mim, uma das principais razões pelas quais nosso “mocinho” paraplégico opta por não voltar à terra é o fato de que no metamundo Pandora ele não tem nenhuma deficiência! Não faz super sentido? Eu digo que sim!
Na linha ativista-militante, é obrigatório assistir o documentário indie “Crip Camp”, filmado nos anos 70 do século passado! Mostra as aventuras de uma turma de jovens com deficiências diversas, que literalmente se jogam em um para-acampamento de férias no mínimo incomum. Entre os participantes, Judith Heumann, referência do movimento político das pessoas com deficiência nos Estados Unidos.
Não dá para não listar, aqui, o campeão do Oscar “CODA”, acrônimo, que em inglês quer dizer “filho de pais surdos” e recebeu em português o infeliz título “No Ritmo do Coração”, conceitualmente vazio, o que, a meu ver, distorce e dilui a discussão central sobre os conflitos vividos por Ruby, ouvinte em uma família redneck surda. Com trama muito parecida, mas bem melhor como filme, prefiro o sucesso francês “A Família Beliér”, que inspirou a versão americana.
Assista, também, “A Teoria de Tudo” e a vida de Stephen Hawking; “Como Eu Era Antes de Você”, no qual a paixão não impediu a morte assistida na Suíça; a dureza irlandesa em “Meu Pé Esquerdo”; o cerebral “O Escafandro e a Borboleta”; “Os Melhores Dias de Nossas Vidas”, divertido e emocionante; o espanhol ”Mar Adentro”, mais uma excelente ode ao suicídio assistido; e “Uma Lição de Amor”, com atuação impecável de Sean Penn, entre tantas outras dicas que eu poderia compartilhar!
Já, no Brasil, não temos tantas opções de cinema inclusivo. Por essas e outras, vou focar em apenas uma obra cinematográfica nacional, aproveitar e também fazer uma singela homenagem. Para tanto, escolhi um filme que nem é tão espetacular assim, mas se baseia em livro chave dos anos 80, que mudou minha vida e de muitos de minha geração e seguintes.
Trata-se de “Feliz Ano Velho”, do jornalista e escritor tetraplégico Marcelo Rubens Paiva, que colocou a deficiência no imaginário coletivo nacional, retratando-a como normal, cotidiana, mas, ao mesmo tempo, transgressora, em um país ainda marcado pela ditadura. A história banal do jovem acidentado ganha profundidade quando interage com o desaparecimento de seu pai, o deputado Rubens Paiva, em um dos episódios mais sinistros do período militar, tema de “Ainda Estou Aqui”, agora nos cinemas e festivais, adaptação de outro texto do autor.
Outro motivo para o destaque é o fato de me identificar muito com Marcelo autor e personagem. Quarenta anos depois, na Croácia e não em Campinas, como ele, mas de forma muito parecida, eu também tomei a decisão errada, mergulhei com tudo onde não era para mergulhar e quebrei três vértebras do pescoço, ficando com sequelas e questionamentos similares aos de Marcelo.
Além disso, de certa forma, sinto-me meio que parte do legado de “Feliz Ano Velho” por ter sido assíduo frequentador do Teatro Augusta, em São Paulo, onde a adaptação para o palco foi encenada por elenco global, com Marcos Frota e Paulo Betti, entre outros. Também tenho a satisfação de, no aniversário de 30 anos do filme, atendendo pedido do diretor Roberto Gervitz, ter conseguido os recursos financeiros junto ao mecenas e amigo Charles Cosac para a restauração da película original!
Embora a sacada do título “Feliz Ano Velho” seja magistral, termino este artigo e mais um ano do calendário bastante contente com as realizações do passado-presente e muito animado com as perspectivas do futuro que já está à vista! Sendo assim, com muito otimismo e energia, desejo a você e a todos, todas, todes e todis (como diria Mussum) ótimas férias e um Feliz Ano Novo!
Cid Torquato é advogado e CEO do ICOM. Foi Secretário Municipal da Pessoa com Deficiência de São Paulo entre 2017 e 2021 e Secretário Adjunto de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência entre 2008 e 2016. É autor do livro “Empreendedorismo sem Fronteiras – Um Excelente Caminho para Pessoas com Deficiência”.