O depoimento da influenciadora e empresária Virgínia Fonseca na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Bets, no Senado Federal, reacendeu o debate a respeito dos riscos associados às apostas online. Virgínia foi convidada a falar a respeito dos contratos de publicidade com casas de apostas, além do incentivo ao jogo entre seus mais de 53 milhões de seguidores (Instagram).
A influenciadora ressaltou que, ao longo das publicidades realizadas para casas de apostas, sempre alertou seus seguidores sobre os riscos envolvidos, além de seguir as normas do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar).
“Sempre deixo muito claro que é um jogo, que pode ganhar e pode perder”, disse em depoimento à CPI. “Que menores de 18 anos são proibidos na plataforma. Se possui qualquer tipo de vício, o recomendado é não entrar, e para jogar com responsabilidade.”
O questionamento que fica é: o consumidor sabe, de fato, quais são os riscos envolvidos ao fazer uma aposta online? Além disso, visto que a publicidade enganosa é proibida, qual é o papel dos influenciadores sob o prisma do Código de Defesa do Consumidor?
Bets legalizadas
No 36º Encontro Estadual de Defesa do Consumidor do Procon-SP, o professor Ricardo Morishita, diretor de projetos e pesquisas no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), explorou em sua palestra magna os riscos das bets em relação ao Código de Defesa do Consumidor. A atividade teve como tema central “Jogos e Apostas online e a Proteção e Defesa do Consumidor”.
“Como posso saber se estou jogando em uma bet legalizada, que tem registro e pagou 30 milhões pela licença para operar?”, questiona Morishita.
Segundo ele, essa é uma indagação que todos os consumidores no Brasil deveriam se fazer antes de mergulhar no mundo das apostas online. Afinal, em um mar de opções – e diante de tanta ilegalidade –, a garantia de navegar em águas seguras é essencial para uma experiência responsável.
Respondendo a própria pergunta, ele diz: “Toda bet legalizada possui o domínio .bet.br. Todas as demais que não têm esse domínio são ilegais e não têm autorização para funcionar”.
Bets legalizadas têm o “bet.br”
Nesse caso, o risco de o consumidor ser prejudicado é enorme. “Ele pode pagar e perder, ou até ganhar e não receber o prêmio”, informa o professor, indagando: “Então, o que o consumidor espera para não ser pego de surpresa?”.
E a resposta de Morishita: “Uma resposta coerente do Estado”.
Aqui, nesse ponto, o especialista em Direito do Consumidor chama atenção para o fato que existem grandes movimentações econômicas por trás das bets. A dimensão está na casa de 30 bilhões por mês. “Ouvi uma conversa em que, ao interromper uma operação de uma casa de apostas não legalizada por apenas uma hora, essa casa pode transacionar 2 milhões de reais nesse curto período. Imaginem o tamanho de todo esse processo.”
Nesse sentido, ele considera a importância de coibir fraudes e a lavagem de dinheiro associada aos jogos. “É claro que as casas legais seguem processos, protocolos e normativas, mas, no fundo, o risco, além do indivíduo, está diretamente ligado à lavagem de dinheiro. E aqui adentramos na Lei 14.790, que especifica que sistema de loterias, jogos e apostas é considerado um serviço público. Isso nos chama atenção para o poder regular. Embora as pessoas acreditem que as apostas sejam totalmente privadas, a realidade é diferente.”
Bets e poder público
O poder público é quem define as normas sobre as bets. Ele possui a autoridade, a obrigação e a responsabilidade de regular atividades que afetam a vida das pessoas diariamente. Além disso, ao considerar que se trata de um serviço público, é claro que a União possui uma responsabilidade objetiva na oferta e na gestão desse serviço. “Estamos vivendo um momento significativo, pois os serviços públicos nunca estiveram tão intimamente ligados à vida, saúde e segurança dos cidadãos. A interrupção do fornecimento de energia elétrica, a religação do serviço e a sua concessão são exemplos de serviços públicos. Da mesma forma, a administração municipal, diante das mudanças climáticas e dos impactos extremos, está diretamente conectada à vida, saúde e segurança de cada indivíduo”, pontuou Morishita.
Pesquisa sobre jogos
Na oportunidade, Morishita apresentou dados da de uma pesquisa do Ipespe sobre os impactos das bets na população. O estudo, que contou com o apoio da Configuração Nacional das Instituições Financeiras (CNF) e Febraban, foi realizado com 2 mil entrevistados, de todo o Brasil. Todas as pessoas tinham mais de 18 anos. A margem de erro é de 2 pontos percentuais, para mais ou para menos, com intervalo de confiança de 95,45%. Um dos dados que mais chama atenção é que 40% dos entrevistados declaram que, atualmente, jogam ou têm alguém na casa que joga em apostas esportivas online ou bets. Há ainda 21% que afirmam terem deixado de jogar.
Um aprendizado essencial a partir dos dados é que a população deseja uma regulação e uma ação do governo em relação à rápida disseminação de sites de apostas pelo Brasil. A regulamentação representa uma forma de proteção para o cidadão. É importante notar que, na sua maioria, os apostadores apoiam a imposição de limites para as apostas e se manifestam contra a utilização do Bolsa Família nesse contexto.
Brasileiro e as bets
Sobre esse dado, a análise de Morishita é a seguinte: “Metade da população brasileira está envolvida com apostas, seja jogando atualmente ou tendo já participado dessa atividade, que se tornou parte de sua vida. Não é surpreendente que o faturamento mensal das casas de apostas oficiais seja em torno de 30 bilhões de reais. Estamos falando de 30 bilhões por mês. E desse universo de apostadores, 57% brasileiros avaliam negativamente os sites de apostas”.
Se o consumidor brasileiro não confia nas bets, por que ele procura por elas?
E aqui surge outra questão preocupante. Embora o percentual seja baixo, 11% acreditam ser possível ganhar bastante apostando pouco. Assim, 40% participam porque desejam ganhar dinheiro. Essa ideia de “dinheiro fácil”, nas palavras de Morishita, é similar à abordagem dos estelionatários, “que enganam e exploram os consumidores”.
Hábitos de jogos e apostas
Cerca de um quarto dos jogadores joga diariamente, o que pode levar ao hábito e, posteriormente, ao vício. Embora muitos percebam que estão perdendo mais do que ganhando, a continuidade no jogo se dá por um desespero em busca de uma melhora na renda. Essa situação é preocupante, pois reflete um ciclo de empobrecimento que o Brasil enfrenta há décadas. A incerteza sobre a melhora financeira leva as pessoas a persistirem em um comportamento que traz mais prejuízos.
Os gastos com apostas variam de 30 a 500 reais, representando um peso significativo, especialmente considerando o salário mínimo. Para muitas pessoas, esse valor pode parecer baixo, mas seu impacto econômico é notável. Mais da metade dos apostadores afirma que esse dinheiro faz falta no final do mês. Dados de mercado, inclusive, indicam que muitos consumidores estão diminuindo suas compras, sugerindo que esses recursos estão sendo direcionados para as apostas.
Endividamento
Os pequenos valores apostados nas bets têm um impacto significativo na vida das famílias, causando endividamento e piorando a qualidade de vida. A pesquisa mostra que as pessoas se sentem atraídas por essa possibilidade de ganhar dinheiro de forma rápida e com pouco investimento. A falta de respostas efetivas na política econômica faz com que muitos vejam o jogo como uma solução palpável para os seus problemas financeiros. A expectativa de transformar quantias pequenas em ganhos maiores é uma característica que chama atenção e preocupa, evidenciando a busca por uma solução mágica no contexto de dificuldades econômicas.
A busca por grandes quantias de dinheiro, como 800 mil reais por mês, está cada vez mais presente, impulsionada pelas promessas de influenciadores que vendem cursos para alcançar esse sucesso. A comercialização dessa ideia está mudando, mas ela também traz à tona questões éticas, já que muitas vezes os influenciadores podem não se responsabilizar pelas consequências financeiras que suas promessas geram nos consumidores, especialmente entre apostadores.
Bets e Código de Defesa do Consumidor
No momento em que uma pessoa decide apostar ou cadastrar-se, deveria existir um alerta de risco. O alerta de risco está previsto no Código de Defesa do Consumidor (CDC), mais precisamente no artigo 9º, que aborda produtos e serviços nocivos e perigosos.
“O que é nocivo já causou danos ao entrar em contato, enquanto o perigoso pode causar prejuízo. Bets é um serviço perigoso. E isso não é apenas uma questão de relação contratual. É tão perigoso que precisa ser controlado e registrado pelo Estado, com autorização e concessão.”
Para Morishita, não devemos tratar as apostas no âmbito do regime de proteção contratual e econômica. “Embora exista essa proteção, o regime jurídico aplicável é o da segurança, conforme os artigos 8º, 9º e 10º. Portanto, ao analisarmos o artigo 9º do CDC, sabemos que aquilo que é perigoso deve ser claramente informado ao consumidor. São dois pontos essenciais: pode causar vício? Pois pode levar à adição, à ludopatia? Então, como está previsto na lei, isso deve ser comunicado. Devemos ser transparentes e informar sobre o vício.”
Além disso, existe a possibilidade de perda de dinheiro. “É um conhecimento geral, mas é importante relembrar devido ao viés de confirmação, vez que sempre estamos inclinados a achar que estamos ganhando. É necessário que isso esteja bem claro e expresso, pois pode afetar o consumidor e causar problemas. A falta de informação caracteriza uma violação do artigo 9º, passível de sanções administrativas e até medidas mais severas, como a suspensão. Isso causa danos, e a falta de informação torna o serviço defeituoso, conforme o regime do artigo 14”, explicou Ricardo Morishita.
Riscos associados à aposta
Ou seja, é essencial dar alerta, pois o serviço é público, mesmo quando explorado na esfera privada. E mais: é necessário alertar sobre os riscos associados às apostas, especialmente porque os sistemas envolvidos são projetados para incentivar o jogo contínuo, visando o lucro.
Por fim, Morishita disse que, ao mudar a nomenclatura de “jogos de azar” para “bets”, as pessoas perdem a consciência dos perigos inerentes ao jogo, que deve ser visto como entretenimento e não como uma fonte de renda. “Essa mudança de terminologia dá uma falsa impressão de facilidade e sucesso, enquanto a realidade é que a maioria das pessoas tende a perder em vez de ganhar”, finalizou o especialista.
*Foto: Lula Marques/Agência Brasil.