No próximo dia 25, a General Data Protection Regulation (GDPR), a lei de proteção de dados europeia, completará um ano de vigência. Por uma ironia do destino, o assunto também terá uma semana importante pela frente no Brasil, mas de uma maneira menos festiva e mais apreensiva. Afinal, existe a expectativa de que a Câmara dos Deputados coloque em votação e dê contornos definitivos a medida provisória que cria a Autoridade Nacional de Proteção de Dados – justamente o órgão público que vai fiscalizar a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Ocorre que a crise política entre o parlamento e o governo federal pode colocar em risco aprovação da MP, o que resultaria em algo que especialistas definem como um “convite ao caos”.
Todo esse clima de incerteza sobre o futuro da autoridade começou em agosto do ano passado, logo após o então presidente, Michel Temer, sancionar a Lei Geral de Proteção de Dados. Na ocasião, ele vetou a criação da autoridade, mas voltou atrás no dia 27 de dezembro ao criar a autoridade por meio da medida provisória 869.
A aprovação da ANPD foi um alívio, mas também gerou algumas frustrações entre especialistas no assunto. Muitos acreditavam que a autoridade teria a forma de uma agência reguladora ou até seria uma autarquia independente, mas, no fim, ela ficou vinculada à Presidência da República. Isso gerou discussões sobre a autonomia do órgão para decidir os rumos do tratamento de dados. Por outro lado, a norma trouxe uma boa notícia: o prazo final foi estendido e passou de fevereiro para agosto de 2020.
No entanto, como o próprio nome sugere, a medida é provisória. A sua perenidade depende de duas votações tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal e com um detalhe: a lei precisa ser aprovada nas duas casas legislativas até o dia 3 de junho. Para dar contornos ainda mais dramáticos, a data cai em uma segunda-feira, dia em que não ocorrem sessões plenárias. Assim, a proposta teria que ser votada até o dia 30 de maio.
Fator político
Na teoria, é possível votar a MP da autoridade. O problema é que as relações institucionais entre a Câmara e o Governo não andam boas e há um perigo real da medida não ser aprovada.
Esse temor ficou evidente no último dia 9 e, curiosamente, não há nenhuma relação com a autoridade, mas com uma medida provisória publicada no início do ano por Bolsonaro: a MP 870, que trata da reorganização dos ministérios e que, entre outros pontos polêmicos, retira o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Economia e o coloca sob o comando do Ministério da Justiça .
A MP do Coaf foi aprovada no início do ano, mas causou divergência entre os poderes. No último dia 9, a medida provisória foi aprovada na CCJ e imediatamente foi colocada em votação no plenário pelo Presidente da Câmara, Rodrigo Maia. A manobra, chamada de “inversão da pauta”, tinha como objetivo furar a fila de outras cinco MPs mais antigas e que estavam prontas para serem votadas, dentre elas a que cria a autoridade.
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Há quem diga que a ideia era não aprovar a MP do Coaf, recolocando o órgão dentro do Ministério da Economia e recriando ministérios. A julgar pela atitude subsequente do governo…
Logo em seguida, o deputado federal Diego Garcia (Podemos), integrante da base do governo, interrompeu a sessão e afirmou que a medida não poderia ser aprovada antes da votação das outras MPs. A justificativa, segundo ele, era que a manobra contrariava uma decisão do próprio Parlamento feita em junho do ano passado e que definia como regra o sufrágio em ordem cronológica. Em outras palavras, a ideia era adiar a discussão sobre essa medida.
“Não podemos atropelar o trabalhos desse parlamento. As medidas provisórias devem ser aprovadas seguindo a ordem que trancam a pauta e, dessa forma, não pode o presidente se valer desse momento. Isso é desleal com os parlamentares dessa casa”, disse Garcia.
Maia acatou o pedido, mas exibiu certa irritação com a manobra do deputado e até colocou em risco a aprovação da MP do Coaf. “Vossa excelência deveria ter escrito esse texto. Vossa excelência não tem o direito de me chamar de desleal porque eu nunca fui desleal com essa casa. Vossa excelência acabou de derrubar a MP 870 porque eu vou ler todas as medidas provisórias e todas as medidas provisórias serão votadas antes da MP 870. Vossa excelência está tirando o Coaf do ministro Moro”, afirmou.
Vigência antecipada
A afirmação de Maia preocupou os defensores da autoridade. Afinal, seria preciso contornar as rusgas políticas e ainda aprovar quatro medidas provisórias para finalmente discutir a MP da autoridade – e tudo até o dia 3 de junho. Na avaliação de especialistas, esse é o pior cenário possível para uma lei de proteção de dados. Após o dia 3 de junho, a MP perderia a sua validade e a autoridade simplesmente não existiria no cenário brasileiro. Isso teria repercussões seríssimas, pois muitos problemas poderiam surgir sem a ANPD – e que não são poucos.
Um deles é que ausência de uma autoridade criaria um vácuo jurídico perigoso, uma vez que a autoridade é citada e dezenas de momentos na LGPD. Isso poderia levar a diversos questionamentos na Justiça, o que poderia resultar em um cenário onde a lei simplesmente não pegou. “Hoje, 30% da lei perde a sua eficácia sem uma autoridade. A lei cita situações onde o árbitro de um problema será a autoridade e ela não existe”, alerta Fabrício da Mota Alves, professor de direito do Instituto Brasiliense de Direito Público de Brasília, ex-assessor do senador Ricardo Ferraço e que participou dos debates que resultaram na aprovação da lei no Senado.
Outro problema diz respeito ao início de vigência da lei. A MP mudou o prazo da entrada para agosto de 2020. Sem a MP, o que conta é o prazo previsto na LGPD, que afirma que a lei entrará em vigor em fevereiro. “Se a MP não for aprovada até o dia 3 de junho, ela caduca e teremos a volta do prazo de vigência para fevereiro. Empresas terão que antecipar os seus planos de adaptação até fevereiro”, alerta Alves.
Convite ao caos
Na opinião de Danilo Doneda, advogado e coautor da minuta que deu origem a lei de proteção de dados brasileira, a LGPD sem a autoridade será um verdadeiro “convite ao caos”, segundo suas palavras. Segundo ele, a ausência de uma ANPD centralizadora seria o ponto de partida para o surgimento de autoridades descentralizadas em todo o País. Nas relações de consumo, por exemplo, os Procons, Ministérios Públicos e até a própria Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) poderiam assumir esse papel. Seria o início do caos, segundo ele. Nesse cenário, os diferentes órgãos de defesa do consumidor poderiam promover suas próprias interpretações da lei, o que impactaria o mundo corporativo. Uma determinado tratamento de dados feito por uma empresa poderia ser legal no Mato Grosso e ilegal em São Paulo, por exemplo.
“A lei vai entrar em vigor em algum momento e a ausência desse órgão pode ser uma jogada não apenas arriscada, mas um convite ao caos. Você terá várias autoridades que vão tentar aplicar a lei, gerando interpretações diferentes em todo o País. Por isso elas devem ser unificadas para não gerar uma insegurança tanto para as empresas quanto para as pessoas em geral”, afirma Doneda.
De fato, a falta de uniformidade na hora de aplicar uma multa entre os 900 Procons se tornou um desafio dentro do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. No início do ano, Luciano Benetti Timm, secretário nacional do consumidor, concedeu uma entrevista a Consumidor Moderno, defendeu a busca de um consenso entre os Procons na harmonização e resolutividade das relações de consumo na plataforma Consumidor.gov.br. “Eu preciso que as entidades que compõem o sistema nacional do consumidor remem para o mesmo lado. Todos precisam apoiar essa iniciativa”, disse à época.
Aprovação
Apesar dos desafios, Doneda e Alves acreditam que os percalços serão superados e a MP será aprovada. Nos bastidores, cresce a expectativa que a autoridade será aprovada na Câmara até o dia 23. Depois disso, ela seguiria para uma votação no Senado Federal na semana que vem.
“Temos muito pouco tempo. O lado positivo é que não há arestas intransponíveis. O maior empecilho é o político e está relacionada a outra MP”, afirma Doneda. “Se o governo e os deputados encerrarem suas diferenças quanto a MP dos ministérios, a MP da autoridade será aprovada. As duas medidas provisórias vencem no mesmo dia, sendo que a da autoridade dever ser votada antes. Se existir um acordo, a autoridade está garantida”, acredita Alves.