Carro popular e a lógica da inclusão medíocre
- Por Jacques Meir
- 7 min leitura
O Brasil sofre de nostalgia compulsiva. Em tempos dominados pela lógica modernizante da experiência do cliente, ainda vemos gente que teima em olhar para o passado atrás de uma realidade que seria, supostamente, melhor que o presente. No conforto da memória, há aqueles que se sentem mais acolhidos e menos desafiados a construir um País realmente mais justo para a grande massa que quer trabalhar e ser feliz agora e no futuro próximo.
O mesmo País que conta com um dos mercados financeiros mais sólidos e avançados do mundo, startups sensacionais e vibrantes, os melhores indicadores de CX em operações locais comparadas às de outros mercados, o SUS (atendimento de saúde quase universal para mais de 210 milhões de habitantes) e os programas de vacinação invejados no mundo inteiro, o País que entende de cabelos de mulheres a aviões como ninguém, que é uma potência agrícola, é aquele que, de repente, “ressuscita” ideias mumificadas como o “Fusca”, a “ditadura”, o “imposto sindical”, o “trem-bala” e, agora, o fóssil do “carro popular”.
A ideia é esdrúxula e sem sentido. Revela, na verdade, o apego ao passado, em que a memória afetiva traz lembranças de momentos reconfortantes. Mas viver com olhos no passado não esconde a realidade. O Brasil de hoje é melhor que o de ontem, por qualquer ótica. O que causa indignação não é o fato de estarmos no patamar atual de desenvolvimento, e sim o de não avançarmos mais rápido. O Brasil de hoje não tem lugar para carro popular, simplesmente porque a ideia de “comprar carro” é quase uma excentricidade. Carros movidos a combustível fóssil, com sua bagagem de custos embutidos – IPVA e licenciamento anuais, seguro, revisões, taxas de financiamento, burocracia para documentação –, são um produto anacrônico em uma realidade dominada pela eficiência digital.
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O “ter” já não faz sentido
A concepção por trás da ideia do carro popular é dar um alento a um tipo de indústria que traria efeitos benéficos para a sociedade como um todo. Carros mais baratos seriam comprados por mais pessoas que, por sua vez, os usariam para atividades diversas e movimentariam a economia. A redução do imposto que ajudaria esse setor seria revertida pela movimentação da economia como um todo. É uma tolice sem evidências nem estudos qualificados.
Qual é o estudo, com boa técnica de dados, que mostra claramente a necessidade e o impacto positivo do tal carro popular de R$ 60 mil? Em uma realidade na qual o que importa para o cidadão e consumidor é ir do ponto “A” ao ponto “B” com rapidez e segurança, ter um carro não é a melhor resposta. “Ter”, aliás, já não é exatamente uma resposta segura para quem busca acesso. Digital é acesso. Tudo aquilo que se consegue obter a partir de poucos toques na tela do celular é acessível, inclusivo e democrático. Tudo aquilo que implica em ir para algum lugar, falar com vendedores, assinar papéis, esperar dias ou meses para pegar um produto, pagar por ele, sustentar o produto agredindo o meio ambiente e se preocupar com as taxas anuais está longe de ser inclusivo.
Pior, a ideia de “popular” no carro está embutida de preconceito: carro “pelado”, “despojado”, desconfortável e, crime de lesa-pátria, desconectado. Se ir do ponto “A” ao ponto “B” significa ficar desconectado do mundo, melhor que se incentive metrô com Wi-Fi, ônibus elétricos e isenção de impostos para taxistas e motoristas de aplicativos. Façamos o teste: redução de impostos para o tal “carro popular” e para motoristas de táxi e aplicativo, bem como de tarifas para transporte público e veremos o que a maioria da população irá preferir e qual medida traria mais impacto para a atividade econômica em geral.
Sim, o Brasil de hoje tem bancos digitais com mais de 70 milhões de clientes, transaciona trilhões com Pix, tem mais de 150 milhões de contas no gov, mais de 170 milhões de contas no WhatsApp, com cidadãos que passam mais de 3,5 horas por dia em redes sociais, mais de 5 horas por dia usando seus smartphones, movimentam mais de R$ 45 bilhões ao ano só em delivery de comida. Mas também tem uma população jovem que não quer comprar um carro zero. A intenção de compra por carros zero cai há sete anos consecutivos. Tudo isso e mais: o consumidor brasileiro é o mais exigente do mundo. Os dados estão aí: 72% dos consumidores brasileiros estão dispostos a trocar de marca por conta de uma experiência ruim – o panorama global tem média de 52%. Além disso, 68% dos consumidores brasileiros estão dispostos a pagar mais por um produto ou serviço se tiverem uma boa experiência do cliente, e reclamam quando não a conseguem.
Obviamente, toda a experiência do cliente associada ao carro popular será ruim. As dificuldades de escolha, o tempo para receber o automóvel, a burocracia e o desconforto vão pesar na equação. Talvez tenhamos um alento por um tempo, muita falação na mídia e só. A lógica da mediocridade não está associada à experiência… O cliente quer ter acesso ao que é bom, de uma forma que consiga pagar e se sentir gratificado. Gratificação e recompensa passam longe na ideia de carro popular e na de qualquer coisa que se inspire num passado acolhedor.
Essa é a grande lição de quem estuda CX seriamente. Aprende-se a olhar para a frente a partir do que é bom para o cliente. A equação é medida em termos de valor e não de custo, de escala máxima e transformadora e não do volume enganoso, sem margem nem recompensa.
A mentalidade orientada à experiência do cliente obriga os líderes e gestores a resolver os problemas do presente, usando tecnologia de ponta e demandando gente capaz de lidar com sistemas de Inteligência Artificial e de se relacionar com o cliente, usando dados para embasar decisões e não nostalgia para orientar o futuro.
O Brasil que tem o consumidor mais exigente do mundo quer dar mais oportunidades para os seus cidadãos. Quer que eles sejam educados como programadores para que ganhemos protagonismo na economia do conhecimento – esta sim, mais inclusiva – e não que fiquemos reféns de produtos medíocres e “tropicalizados” para responder à nossa falta de capacidade. Carro popular é a consagração do viralatismo bananeiro.
De uma vez por todas, é imperativo entender que o Brasil anda para a frente, ainda que carregando o peso das ideias antigas. Poderia andar mais rápido sem elas. Se irá ou não, depende das nossas escolhas.
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