A IDENTIDADE NOSSA (E DIFERENTE) DE CADA DIA
- Por Jacques Meir
- 5 min leitura
“O eu profundo e outros eus”, uma expressão um tanto enigmática, mas intrigante, nomeou uma coletânea de Fernando Pessoa, extraordinário poeta da língua portuguesa, famoso por seus heterônimos. Pessoa esmerou-se em construir diversas identidades por trás de sua poesia – Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro, Bernardo Soares e ele mesmo. O brilhantismo de sua obra tornou real e palpável cada heterônimo, com personalidades distintas retratadas em textos que assumiam emoções e visões de mundo contrastantes.
Ainda há muito mistério em torno das motivações e inspirações que levaram Fernando Pessoa a criar suas diferentes identidades. Radicalmente moderno, o poeta português antecipou uma tendência essencial que vivenciamos de modo intenso neste início dos anos 2020: a ânsia e a necessidade de pessoas assumirem diferentes identidades ao longo de suas vidas.
A busca pela autoexpressão pessoal contida em identidades diversas é uma reação natural a décadas de convívio social e práticas de consumo baseadas na assimilação e atribuição de rótulos e estereótipos. O judeu pão-duro, a dona de casa, o executivo engravatado, o militante, o retirante nordestino, o milico, a bombshell… A lista é infindável e representava uma âncora simplória para facilitar relacionamentos e confirmar vieses naturalmente incorporados ao nosso comportamento diante do outro. O “outro” precisava ser incluído sob um rótulo qualquer para que pudéssemos aceitá-lo, mesmo que rigorosamente nenhum comportamento exibido estivesse em sintonia com o significado desse rótulo.
Mas a internet e a própria evolução do consumidor fizeram ruir esse edifício mental, que reproduziu estereótipos e vieses, além de preconceitos francamente incompatíveis com a dinâmica social e do mercado. À parte, a gritaria um tanto passional e por vezes histérica de grupos identitários (ações afirmativas e lutas por reconhecimento de minorias são também elas expressões legítimas de identidade). O que é latente nos consumidores e cidadãos atuais é uma vontade de expressar seu momento, de se sentir bem com suas crenças e valores e de se afirmar como indivíduo.
“ASSUMIR IDENTIDADES DIFERENTES SIGNIFICA AFIRMAR A PRÓPRIA ESSÊNCIA.
Nestes 25 anos de Consumidor Moderno, tivemos a oportunidade de estudar um vasto conjunto de manifestações humanas, tecnologias, comportamentos, produtos, práticas culturais; identificamos microtendências, modismos, tendências de fato e percebemos que as pessoas inseridas no mercado consumidor, independentemente de renda, perfil e gênero, anseiam por autoexpressão, pela liberdade de serem digitais e gamers hoje e tradicionais analógicos amanhã (os extremos aqui são meramente ilustrativos). No cotidiano, essa dinâmica reflete o poder que a informação abundante exerce sobre as expectativas, os hábitos e as atitudes das pessoas em seu cotidiano. O efeito “disrupção” também se disseminou para o âmbito individual: é possível reinventar-se como pessoa, como profissional, como parceiro, amigo, pai, mãe, filho, dando voz e vazão às emoções, aos sentimentos, às carências, às buscas e às conquistas.
Assumir identidades diferentes significa afirmar a própria essência. É uma jornada de autoconhecimento ainda inexplorada e sobejamente desconhecida pelas ainda claudicantes tecnologias de Big Data – que se esmeram em criar gatilhos de ofertas para personas que não representam comportamentos rígidos, mas fluidos, mutantes e voláteis.
Ao longo dos próximos meses, em todas as plataformas e formatos, iremos mergulhar nesse mundo de intensa plasticidade, intangível, sensorial e fascinante das identidades amoldadas em tendências e expressões que se distinguem e se conectam em um balé fluido e vívido: veremos como nativos ecológicos podem estar alinhados àqueles que valorizam e sobrepõem a cultura local sobre padrões globais pasteurizados; comentaremos sobre os efeitos da robotização da vida (nossa busca sobre comando e controle da vida digital) em contraponto aos novos padrões de privacidade e transparência; discutiremos como viver melhor, com maior consciência corporal e de apego ao planeta, encontrar ressonância em públicos que renegam a idade como um indicador de comportamento predefinido. E ficaremos impressionados sobre como a maior parte de nós se empenha em buscar a melhoria de nossa performance social, profissional, sexual, estética, intelectual em um processo irreversível de auto-otimização.
A ênfase na afirmação das identidades também condiciona empresas a amoldar suas próprias marcas e valores a essa evolução do consumidor. O Eu, Etiqueta, imortalizado no poema de Carlos Drummond de Andrade, que dominou a paisagem das relações de consumo ao longo do século 20 até o início da década passada, felizmente cede espaço ao “Eu profundo e outros eus” que Fernando Pessoa enxergou há cerca de cem anos.
É disso que se trata agora: compreender o consumidor destes anos 2020 significa ir além do “eu” que se vislumbra na gritaria e na polarização inconsequente, delirante e um tanto desprezível das redes (anti)ssociais. É olhar para pessoas livres de rótulos que revelam seus profundos e múltiplos eus, sem medo de serem felizes.
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