A crescente presença da Inteligência Artificial (IA) na vida cotidiana não é apenas uma inovação tecnológica. Ela também está moldando nossas interações sociais e afetivas de maneiras que desafiam nossa compreensão sobre o que significa ser humano. Mas, antes de entrar nesse aspecto, importante destacar que, no Brasil, de forma muito rápida, a IA ganha cada vez mais adeptos.
Prova disso, inclusive, está em uma pesquisa recente do Observatório Fundação Itaú e Datafolha.
O estudo, intitulado Consumo e Uso de Inteligência Artificial no Brasil, analisa o consumo, uso e as percepções da população brasileira em relação à IA. Ele leva em consideração aspectos como frequência de uso, impactos no trabalho e na saúde mental. Bem como expectativas sobre o futuro e as diferentes interpretações entre grupos sociais.
Fato é que, no Brasil, a maioria das pessoas já teve contato com o conceito de Inteligência Artificial (82%). Por consequência, mais da metade (54%) consegue entender o que o termo significa. Somente 18% nunca ouviram falar. Outro dado importante é que 46% das pessoas não compreendem seu significado. Entretanto, mesmo assim, 93% dos entrevistados utilizam alguma ferramenta que incorpora essa tecnologia.
Mais jovens = mais IA
O estudo também revelou que a utilização é mais comum no cotidiano dos mais jovens, daqueles com maior nível educacional e das classes econômicas mais altas. Veja abaixo alguns insights:


Consumo e IA

No contexto da defesa do consumidor, esses dados trazem à tona algumas questões fundamentais. Entre elas, destaque para a qualidade das relações que estabelecemos – tanto com produtos e serviços quanto entre nós mesmos. O alerta vem de Laura Hauser, pesquisadora do Departamento de Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Ela também atua como curadora do Knowledge Exchange Sessions (KES), plataforma de troca de conhecimento, inovação e criatividade para executivos.
Laura está na vanguarda desse debate, investigando como a IA não apenas simula conexões emocionais, mas também as redefine.
Formada em História pela Universidade Panthéon-Sorbonne e mestre em Sociologia da Cultura pela Universidade Sorbonne-Nouvelle, ela é especialista em “Tecnologia de Mercado na Era Digital” pelo Instituto Holon de Tecnologia de Israel. Seu foco de ação está em compreender a complexa relação entre tecnologia, afetos e convivência social. Inclusive, esse é o tema de seu doutorado.
Conectado e solitário
Seu trabalho revela a inquietante realidade de um mundo cada vez mais conectado, mas paradoxalmente mais solitário. Em suas pesquisas, inclusive, Laura aponta que muitas pessoas estão buscando na IA soluções para a solidão, recorrendo a máquinas para o que deveria ser um espaço de interação humana, como amizades, relacionamentos e até mesmo terapia.
Nesse contexto, um dado alarmante que surge na pesquisa do Observatório Fundação Itaú é que 45% das pessoas já utilizaram IA para auxiliar na saúde mental de alguma forma. Dessas, a maioria sentiu que IA ajudou a lidar com questões de saúde mental.

Esse fenômeno não é isolado; basta conferirmos os relatos de casamentos com robôs, principalmente em países asiáticos. Para os adolescentes, a situação é ainda mais intrigante, com três em cada quatro considerando a possibilidade de relações sexuais com robôs. Esses dados não apenas evidenciam a mudança nas dinâmicas sociais, mas também levantam importantes questões sobre o que isso significa para a empatia e a convivência comunitária.
O paradoxo da relação com IA
Laura provoca reflexão ao afirmar: “Vivemos um paradoxo: temos milhares de amigos online, mas relações cada vez mais frágeis.” Isso nos leva a questionar o papel da IA. E a pergunta que fica é: até que ponto ela deve ser utilizada como companhia? “Embora a IA possa simular o afeto, ela não o sente. Em síntese, esse uso crescente de tecnologias para preencher lacunas emocionais pode levar a uma substituição preocupante de vínculos humanos genuínos por interações artificiais. Por consequência, isso nos força a reavaliar os limites do que consideramos relacionamentos.”
A pesquisadora enfatiza a importância de desenvolver habilidades humanas em vez de tratá-las como competências replicáveis por máquinas. “Essa abordagem se torna crucial em um cenário no qual as empresas adotam a IA como parte central de suas operações. Logo, as implicações éticas do uso da tecnologia precisam ser levadas em conta”.
Em seus escritos, Laura também se debruça sobre como as expectativas de conveniência e personalização criadas pela tecnologia afetam a paciência e a empatia nas relações humanas. Em seu artigo Da ferramenta ao afeto: os relacionamentos com a IA e o mercado da solidão, ela explora como a busca por soluções rápidas pode prejudicar nossa capacidade de construir laços significativos. E o humor nas redes sociais revela-se um sintoma das contradições da vida corporativa contemporânea, mostrando que as interações digitais frequentemente servem como um mecanismo de defesa contra a solidão.
Demandas urgentes
Com um olhar atento às interseções entre a academia, o mercado e a cultura, Laura Hauser levanta questões urgentes sobre como a Inteligência Artificial não apenas transforma a forma como consumimos, trabalhamos e nos comunicamos, mas também redefine nossas expectativas afetivas e sociais. “Em um mundo onde a IA se torna cada vez mais presente, a defesa do usuário de IA se torna crucial, pois é necessário garantir que as tecnologias não apenas atendam às necessidades de conveniência, mas também respeitem a complexidade das relações humanas.”
Laura ainda salienta que analisar o impacto da IA nas relações humanas não é apenas uma análise acadêmica; é um chamado à reflexão sobre o que significa ser humano em uma era dominada pela Inteligência Artificial. “Afinal, enquanto buscamos conforto e companhia nas máquinas, não devemos esquecer a importância de cultivar e proteger nossos vínculos humanos, que são fundamentais para uma convivência social saudável e empática”, pontua a especialista.
IA e regulamentação

À medida que a sociedade se torna mais dependente dessas tecnologias, é essencial garantir que a informação sirva ao bem coletivo e que a convivência social se mantenha harmoniosa. Essa é a visão de Riadis Dornelles, vice-presidente da Associação Nacional de Publishers do Brasil (ANPB). Portanto, em seu parecer, a regulamentação da IA não é uma simples questão burocrática; trata-se de um esforço necessário para navegar em um cenário cujas regras ainda não compreendemos completamente.
Dornelles, CEO da PremiumAds para a América Latina, destaca que, assim como a Revolução Industrial transformou a forma como trabalhamos e vivemos, a atual revolução tecnológica está redefinindo áreas como a criação, as decisões e a linguagem – aspectos que antes eram considerados exclusivamente humanos. Com a IA, surge a tentação de delegar responsabilidades a máquinas, mas ele ressalta que isso não pode acontecer. “A IA deve ser uma ferramenta. E nunca o árbitro final da verdade.”
Direitos fundamentais
O especialista alerta para os riscos de abraçar respostas imediatas e a eficiência absoluta sem supervisão. Se não formos cuidadosos, podemos acabar sendo guiados por sistemas que não têm responsabilidade a prestar. Para ele, regular a IA é, portanto, uma forma de proteger os fundamentos da vida em sociedade.
Além disso, ele observa que a IA é mais como um organismo em aprendizado do que uma simples ferramenta. Embora nunca se iguale à mente humana, já possui habilidades que muitas vezes superam as nossas. “Ocorre que, com os avanços nas redes neurais e os investimentos bilionários no setor, a urgência da regulamentação se torna ainda mais evidente. Sem um sistema que garanta transparência, explicabilidade e reversibilidade, corremos o risco de viver em um ecossistema no qual algoritmos tomam decisões por nós sem prestar contas”, enfatiza Riadis Dornelles.
Por fim, ele vê a regulação como uma bússola a guiar os consumidores de IA nesse novo cenário, em vez de ser vista como um obstáculo. “Em síntese, o consumo crescente de IA entre os brasileiros exige que tomemos essas discussões a sério, para que possamos moldar um futuro no qual a tecnologia e a sociedade coexistam de forma equilibrada.”





