A falta de acessibilidade é uma forma clara de discriminação. E discriminar pessoas com deficiência é crime! Assim estabelece a LBI – Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Garantir acessibilidade, idealmente para todos, é uma obrigação legal e quem falha em cumpri-la pode estar cometendo delitos criminais, além de potenciais consequências no âmbito cível.
Na LBI, três artigos preveem os crimes e suas penas relacionados à falta de acessibilidade, que são:
Art. 88. “Praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência:
Pena – reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa.
§ 1º A pena é aumentada de um terço se a vítima encontra-se sob o cuidado ou responsabilidade do agente.”
A discriminação, seja por não fornecer condições adequadas de acesso físico, como rampas, elevadores ou banheiros adaptados, seja por barreiras tecnológicas em sites e aplicativos, configura crime. Negar o direito à acessibilidade é excluir a pessoa com deficiência do convívio social e do pleno exercício de sua cidadania.
Art. 89. “Deixar de cumprir, retardar ou frustrar, sem justa causa, a execução de ordem judicial expedida em ação civil pública proposta para a proteção de interesses coletivos ou difusos relativos às pessoas com deficiência:
Pena – reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa.”
Art. 90. “Recusar, retardar ou omitir dados técnicos indispensáveis à propositura de ação civil pública relacionada à pessoa com deficiência, quando requisitados pelo Ministério Público:
Pena – reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa.”
Estes artigos dizem respeito a violações especificamente no âmbito de ações civis públicas, na defesa de direitos coletivos. Trata-se de recurso jurídico de grande relevância, infelizmente ainda muito pouco usado no Brasil.
Excelente, não acha?
Eu também acharia, se esses artigos estivessem sendo devidamente aplicados em situações de violação de direitos das pessoas com deficiência Brasil afora, mas não estão! Existe um profundo desconhecimento e consequente inação dos profissionais do direito em geral, sobre a LBI e os direitos mais básicos dos cidadãos com deficiência. Resultado: o direito não é aplicado e grassa a impunidade!
Na verdade, comprometendo de forma ainda mais contundente a aplicação da LBI, infelizmente colocando-a em um limbo legal, está o fato de que ela carece de regulamentação da maioria de seus artigos. Ou seja, não pode ser aplicada por falta de regulamentos e regras para seu uso, mesmo com mais de 8 anos desde sua entrada em vigor. O direito existe, mas, hoje, é impossível materializá-lo.
Especificamente com relação à acessibilidade digital em sites, por exemplo, ainda antes de podermos pressionar o Executivo Federal pela regulamentação do artigo 62, tivemos que criar grupo de trabalho específico junto à ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas. Ainda neste ano, deve ser lançado o padrão brasileiro, a exemplo da NBR 17.060, sobre acessibilidade em aplicativos, e da famosa NBR 9050, que há muitos anos determina os critérios de acessibilidade arquitetônica.
De qualquer forma, além do aspecto criminal, também temos a esfera civil, que não precisa de regulamentações, mas, também, é muito pouco acionada, tendo em vista a quantidade de violações existentes! Quando a ausência de condições adequadas de acesso prejudica uma pessoa com deficiência — seja em um espaço físico ou virtual, público ou privado —, essa pessoa tem o direito de exigir reparação. Isso pode incluir a busca pelo ressarcimento por danos materiais e morais, que visam não apenas compensar a dor, a frustração e o constrangimento infringido, mas, também, atuar como forma de punição, estímulo à correção do erro e exemplo junto a outros infratores.
O saudoso Romeu Sassaki, o mais importante pensador sobre a inclusão da pessoa com deficiência no Brasil, propôs em seus escritos uma visão ampla sobre acessibilidade, abrangendo não apenas os ambientes arquitetônicos e digitais, mas, também, questões comunicacionais, metodológicas, instrumentais, programáticas, naturais e atitudinais. Ou melhor, acessibilidade é multidimensional, o que enseja outras possibilidades de violação de direitos. Segundo ele, com razão, precisamos promover a acessibilidade em todas as suas formas para chegarmos à acessibilidade estrutural que queremos.
Resumindo: já faz tempo que não há mais justificativas técnicas, legais ou morais plausíveis para mantermos espaços físicos ou virtuais inacessíveis, sem acessibilidade. E já não dá mais para ficar passando a mão na cabeça de quem não cumpre a lei, desrespeitando direitos básicos das pessoas com deficiência, com certeza o segmento mais vulnerável da sociedade!
Para mim, paralelamente à necessária mobilização política das pessoas com deficiência, pressionando pela regulamentação da LBI e pelo respeito aos nossos direitos em geral, sou a favor da judicialização, seja no plano individual ou coletivo, privado ou público, contra toda e qualquer violação a esses direitos tão duramente conquistados.
Temos que judicializar inclusive quando se trata de artigos não regulamentados da LBI. Se o Legislativo e o Executivo Federais não conseguiram completar o processo regulatório, ao Judiciário não cabe opção, se não decidir e fazer valer o direito!
Cid Torquato é advogado e CEO do ICOM. Foi Secretário Municipal da Pessoa com Deficiência de São Paulo entre 2017 e 2021 e Secretário Adjunto de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência entre 2008 e 2016. É autor do livro “Empreendedorismo sem Fronteiras – Um Excelente Caminho para Pessoas com Deficiência”.