Já são seis meses de recomendações para viver de forma isolada, preservando o distanciamento social, saindo às ruas somente para o necessário, usando máscaras, mergulhando as mãos em álcool em gel e vendo estatísticas de toda sorte sobre a evolução da pandemia de COVID-19. O vírus que corre o mundo fez do Brasil o seu segundo lar (até o momento, o primeiro ainda é primazia dos EUA), desconstruiu planos, projeções, metas e objetivos e zombou do nosso famoso “jeitinho”.
O fato é que poucos de nós estão realmente suportando esse novo modo de vida feito de restrição a qualquer aglomeração possível (em bares, cinemas, shows, lojas, restaurantes, filas), longas jornadas em home office – para quem pôde se dar a esse luxo – ou rotinas de trabalho fora de casa – para quem não tinha como ficar em casa, com máscaras na face o dia todo, e o deslocamento no transporte público com suas catracas, portas, barras e esbarrões. Para um e outro grupo, a paranoia de ter de tocar em qualquer coisa estranha fora de casa.
Claro, ninguém aqui advoga pela “liberdade” de sair por aí, “peito nu, cabelo ao vento” para bancar o herói diante de uma pandemia. Não é hora de sermos heróis, mas sim de sermos solidários e de compreendermos que esta é a Era da Limitação Forçada. Todos podemos ser vetores de contágio do vírus, e temos de funcionar como barreiras para evitar uma transmissão ainda mais acelerada de uma doença como que nascida para emular nossa vida digital: veloz, escalável e perigosa para quem é descuidado. Sim, o novo coronavírus é o vírus de nosso tempo digital.
Vida nova
Enquanto o vírus se propaga, para consumir pulmões fragilizados, todos tiveram de adaptar determinados hábitos, particularmente os de consumo. Milhões de brasileiros passaram a viver em um constante “streaming”, no fluxo de uma transmissão incessante de dados, entre lives, calls, webinars, séries nas plataformas de entretenimento, com os dias se sucedendo em looping, um depois do outro, em uma rotina cansativa (quantos não se sentem nostálgicos das horas no trânsito, das semanas nos escritórios e das festas e happy hours no trabalho?). Basta ver que o consumo de plataformas de streaming e de conteúdo na internet aumentou para mais de 50% até 80% em todas as faixas etárias (ok, o pessoal com mais de 55 anos só aumentou o tempo vendo filmes e séries em 31%…). Cozinhar mais em casa, conviver em família durante os dias, as semanas e os meses de trabalho, acionar os serviços de delivery de refeições e de tudo o mais, comprar pelo e‑commerce – mais de 20% de crescimento, mesmo excluindo a indústria de turismo, terrivelmente machucada pela pandemia que praticamente zerou viagens e hospedagens – e fazer consultas médicas por meios digitais. A telemedicina, que estava em uma discussão eterna, simplesmente passou por cima das discussões e divagações e ganhou espaço, permitindo que médicos e pacientes pudessem se comunicar de forma segura.
Obviamente, os casos de depressão e de fragilidade emocional se avolumaram, na mesma medida em que o consumo de bebida alcoólica aumentou. Dados da eMarketer nos EUA mostram aumento de compra de bebida de 64% na Geração Z, 66% na Geração Y e 54,9% na Geração X e Boomers. Por aqui, os números avançaram 18% até maio (dado mais recente em pesquisa da Fiocruz e Unicamp).
Mas, depois de seis meses, todas essas adaptações trouxeram consequências. Uns ainda conseguem manter a disciplina e a força de vontade para manter quarentenas, vidas discretas e comportamento com razoável margem de segurança. Mas outros tantos já não conseguem mais suportar as privações do convívio social e das ruas. Aos menores sinais de relaxamento por parte de prefeituras e governos desesperados por retomarem atividades – e receitas – em ano eleitoral, milhares de consumidores resolveram correr – e mesmo ignorar – riscos para irem à praia (sem máscara), aos bares (sem distanciamento) e ao comércio de rua (tocando em tudo). Assim, em um País que resolveu brincar de cabo de guerra para todo e qualquer assunto, temos também o comportamento do consumidor aglutinado em dois polos: o do desbunde e o moderado. Disciplina, persistência e força de vontade de um lado. Impaciência, inconstância e alienação de outro.
Buscando a confiança
O que uma empresa pode esperar do futuro nesse contexto? Muito se fala em “resgatar a confiança do consumidor”, mas de que confiança estamos falando? A de sair de casa para “uma cervejinha” no boteco ou aquela decorrente da perda de renda e do temor com a própria saúde e a dos familiares?
É fato que a confiança necessária para que a economia se restabeleça depende também da restauração da confiança e que é possível sair e conviver sem risco – o que, em última instância, só será possível com a chegada de uma vacina. Até lá, imersos no mar digital, em busca de sentido, coragem, algum prazer, precisamos de âncoras emocionais. É esta a avenida de oportunidades que está aberta para as empresas: disposição para dialogar, entender, amparar, mostrar vontade genuína de criar vínculos e entendimento. Mais do que nunca, este é o momento das empresas dispostas a ouvir e a ser amigas dos consumidores, definitivamente interessadas em seu bem-estar. Viver melhor faz bem para os negócios, para o planeta e para as pessoas.
Ainda assim, o pós-pandemia será um embate entre aqueles que irão manter os hábitos mais reservados e discretos, a vida mais caseira, familiar e controlada e aqueles que farão questão de retomar o ritmo de vida abortado pela quarentena. Como um teste do marshmallow revisitado e ampliado (clique aqui para ver vídeo), certamente veremos as consequências da impaciência e da busca pela recompensa instantânea no futuro próximo.
Logo, antes de embarcar na onda do “novo normal”, uma onda ruidosa de clichês, convém ficar atento aos sinais: estamos em plena vigência do antinormal, um contraponto à vida que tínhamos até alguns meses atrás. Como ensinou Nassim Taleb em “Antifrágil – Coisas que se Beneficiam com o Caos”, cultivar o antinormal significa se beneficiar da pandemia para reinventar o normal.
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