Não tenho motivos para gostar de Carnaval. Considero o período uma gigantesca, enfadonha e desnecessária perda de tempo, incompreensível para um país tão em débito com seus cidadãos quanto o Brasil. Como boa parte da população, enxergava o feriado como a oportunidade de emendar mais alguns dias de descanso após os feriados de fim de ano, uma espécie de “chorinho” do recesso de ano novo. Mas também via com indisfarçável espanto o engajamento de pessoas comuns na produção e no desfile de escolas de samba no Rio de Janeiro e em São Paulo, bem como no entusiasmo legítimo ao seguir os trios elétricos e bandas em cidades como Salvador e Olinda.
Por décadas, o Carnaval foi um momento em folga, embebido em cerveja barata e simplicidade sociológica. Um momento no qual a sociedade brasileira se igualava chacoalhando corpos ao som de música com ritmo percussivo, cíclico, incessante, letras escritas em português constrangedor, alegria forçada e achatamento das individualidades.
No Carnaval à brasileira os limites se esgarçavam, o convite à visualização e à sensação dos corpos era constante, independentemente de etnia, perfil de renda ou idade. Na escola de samba a desfilar na avenida, a celebridade dançava no mesmo nível do passista humilde. Globo e favela, morro e bairro, periferia e jardins se confundiam e avançavam unidos para perpetuar uma tradição que nasceu católica e se tornou meio pagã, meio sincrética.
Não sei bem quando essas impressões elementares começaram a se alterar. A obra de Roberto Da Matta me trouxe muito conhecimento sólido sobre o sentido, a ideia e a representatividade do Carnaval. A ideia de “festa do reverso”, da bolsa onde tudo se mistura sempre fez muito sentido. Porém, há algum tempo só consigo sentir mal-estar, desconforto e desgosto nesse período do ano.
O Carnaval que combinava extremos, que satirizava convenções e que exagerava preconceitos e visões simplórias da realidade social e política tornou-se uma organização dedicada a promover um conjunto de ideias, um código moral, uma visão de mundo. Sim, é legítimo que artistas usem seu talento para expressar sua maneira de ver as coisas. Mas há um limite entre a expressão artística plural, repleta de leituras e informações e o proselitismo puro e simples.
Pois o Carnaval brasileiro, aquele que irrompe nas páginas da mídia impressa e digital, nos vídeos e nas telas, nos áudios e nos celulares parece cada vez mais um exercício de busca pela hegemonia de valores e comportamentos. A festa de Momo tornou-se um momento de incansável proselitismo de determinados grupos que defendem suas causas e encontraram no evento as bases para vocalizar sua agenda. E vamos lá, nada de errado em defender agendas, desde que não se tornem hegemônicas, monopolizadoras do discurso, da prática, da festa, do tempo e da folia. Na ótica desse Carnaval repaginado, não há lugar para a calma, para o trabalho, a tristeza, o conservadorismo, ou para o exercício do contraditório. A agenda que vale é repleta de ataques vigorosos e indignados contra o individualismo, a família convencional, os valores judaico-cristãos, o combate ao comportamento de risco jovem, em um país com índices alarmantes de gravidez na adolescência e uso de drogas e álcool, legitimada a partir da narrativa falaciosa de “uso medicinal ou recreativo”. O exercício de democracia do Carnaval tornou-se um exercício antidemocrático, que cerceia pessoas de saírem de suas casas em São Paulo, mesmo em bairros repletos de idosos – para a passagem dos blocos atravessando sambas misóginos encharcados de cerveja quente – subvertem a rotina do comércio – 7 dias de vendas fracas no mês mais curto do ano – e produzem um estardalhaço delirante sobre uma “resistência” contra o avanço do “autoritarismo”.
O que espanta é verificar qual a real contribuição que essa “folia da resistência” produziu de útil nos últimos, 10, 20 anos. Salvo comemorações alegres das escolas merecidamente agraciadas com o título de campeãs do Carnaval, hectolitros de cerveja consumidos a rodo por foliões que se desdobram em seguir 3, 4,10 blocos, a produção e venda de milhares de abadás ridículos, dinheiro público gasto em banheiros químicos que não impedem procissões de foliões a fazerem xixi nas ruas e brados em prol das ações afirmativas, o que mais fica após os dias de folia? O que tiramos de produtivo? Que lições tiramos para a melhoria das políticas públicas, que inovações trazemos para nossas empresas, que ideias iremos discutir nas escolas?
É certo que muitos ativistas e entusiastas da festa irão responder a essas perguntas com clichês que identificam o Carnaval dentro da representação identificada por Roberto DaMatta (que citei acima), mas essa visão não corresponde à realidade. À luz da insuportável razão, aquela que muitos brasileiros desprezam em função de aproveitar prazeres fugazes, o Carnaval é um período dedicado ao desperdício. É insustentável, pois gera montanhas de lixo e fantasias e alegorias que só serão usadas um dia por ano!
Faz a alegria de subcelebridades e ressalta as desigualdades – a gente bonita que ferve nos camarotes em contraponto aos garis que varrem as sobras da avenida. Mesmo como negócio, o Carnaval é rudimentar, com escolas, blocos e trios elétricos indo atrás de patrocínios, doações de contraventores e verbas públicas. Fosse um negócio organizado, o Sambódromo do Rio teria desfiles regulares todos os finais de semana, com experiências imersivas e sensoriais para turistas endinheirados.
Não tenho aqui a menor pretensão de pedir o fim do Carnaval (jamais!). Quero apenas jogar luz sobre um assunto que invariavelmente não recebe crítica ou contestação, como se pairasse acima da mera humanidade. Que a festa continue, com seus muitos vícios e poucas virtudes é uma escolha do país e dos cidadãos. Que continue a ser uma festa tão dedicada a desperdiçar potencial criativo e energia fantasiada de alegria e vibração é simplesmente perpetuar nosso apreço pela ilusão e pelo pensamento mágico. Sim, precisamos que a festa popular tenha mais ambição criativa, temática e inovadora.
O Brasil não merece o Carnaval que tem. Bem que podíamos parar de nos contentar com tão pouco.