Na contramão da economia global, o setor de tecnologia vem experimentando crescimento durante a pandemia da Covid-19. De acordo com um relatório da consultoria Kantar, a base de usuários do aplicativo de mensagens WhatsApp cresceu em uma média global de 40% no primeiro semestre de 2020. Entretanto, esse aumento da presença de mercado da empresa também veio acompanhado por mudanças em seu modelo de negócios.
O Facebook, que também é proprietário do aplicativo de troca de mensagens, anunciou uma mudança nos seus termos de uso em janeiro de 2021. As alterações preveem mudanças na forma que o WhatsApp maneja os dados de usuários. A partir do dia 15 de maio, a plataforma passa a compartilhar com os parceiros do Facebook informações como o endereço de IP do usuário, número de telefone e relatórios de atividades na plataforma – como ele interage com contas comerciais, por exemplo.
As mudanças nas políticas de privacidade do WhatsApp causaram revolta entre usuários, especialistas e até mesmo empresários. Um deles foi o fundador da Tesla e SpaceX, Elon Musk. Após o anúncio da nova política de privacidade, o bilionário prometeu doar dinheiro para o Signal (aplicativo independente cuja privacidade dos usuários é uma das principais bandeiras). Mas qual é o motivo para tanta revolta?
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Um passado que condena
Não é de hoje que o Facebook é criticado pela forma que trata os dados dos usuários. Escândalos como o da Cambridge Analytica, onde informações pessoais de internautas coletadas ilegalmente pela rede social foram utilizadas na campanha eleitoral de Donald Trump, já haviam maculado a reputação da companhia. Na época, o CEO da empresa, Mark Zuckerberg, chegou a prestar depoimento no senado norte-americano.
Quando se trata do WhatsApp, a polêmica é mais sutil. A empresa, que começou como um pequeno aplicativo independente, foi comprada pela gigante de tecnologia em 2014. A transação, que movimentou cerca de R$ 90 bilhões, foi acompanhada por declarações dos executivos da empresa onde garantiam que nunca sustentariam o aplicativo com publicidade. Brian Acton, cofundador da empresa, chegou a declarar para o El País que “não suportaria publicidade no aplicativo”.
Mas a promessa durou pouco. Em 2016, a empresa começou a compartilhar dados dos usuários com o Facebook. A diferença é que, na época, os internautas poderiam optar por não fazer isso. As mudanças, que previam maior “integração” entre as plataformas, causaram descontentamento entre o altoescalão da big tech. Dois anos depois, Brian Acton anunciou sua saída do WhatsApp. Em entrevista para a Forbes ele explicou que um dos motivos para seu desligamento foi o fato da privacidade dos usuários estar “sendo vendida”.
O que muda com as novas políticas de privacidade?
De acordo com a advogada especialista em direito digital, Gisele Truzzi, as atualizações nas políticas de privacidade correspondem a uma postura mais incisiva e invasiva da plataforma. “Eu, como especialista em direito digital, acredito que o WhatsApp não possa compartilhar dados com parceiros, mesmo que do mesmo grupo econômico.”
A especialista conta que tal postura poderia ser vista como uma violação ao GDPR. A sigla, que significa General Data Protection Regulation, faz referência à legislação europeia de proteção aos dados. Mais rígida do que sua equivalente brasileira (a LGPD), a GDPR estipula que as empresas precisam ser claras quanto à finalidade dos dados coletados.
O anúncio já provocou reações entre entidades europeias. Autoridades de proteção de dados italianas afirmaram que já contactaram os órgãos responsáveis da União Europeia para “compartilhar preocupações quanto às novas políticas da empresa”. A reação do WhatsApp foi tornar a adesão aos novos termos de uso facultativa na região. Entretanto, a postura nas américas é bem diferente.
Na região, usuários que não concordarem com os termos serão impedidos de continuar usando a plataforma a partir do dia 8 de fevereiro. Truzzi aponta essa como outra irregularidade cometida pela empresa. “As normas europeias são mais rígidas. Mas até mesmo a LGPD estipula que o usuário que se inscrever na plataforma precisa ter seus dados protegidos.” Segundo ela, o fato de as empresas fazerem parte da mesma holding não as exime das responsabilidades.
A problemática se expande quando consideramos que ambas legislações estipulam que é o usuário que determina o quanto da sua vida pessoal deve ser exposta. Para Truzzi, esse tipo de decisão precisa ser feita individualmente, não com o caráter binário e generalista pregado pelas big techs. No caso do WhatsApp, por exemplo, o usuário dispõe de duas opções: ou aceitar os novos termos, ou perder completamente o acesso ao serviço. “Isso não deve ocorrer. Deveria existir um meio termo onde o usuário escolhe quais são os dados que ele concorda em compartilhar.”
O que os dados afetados pela nova política de privacidade representam para você?
Para qualquer pessoa com pouco conhecimento de tecnologia, o uso de tais dados podem ser encarados com leviandade. Afinal, o que o seu endereço de IP diz sobre você? A resposta para essa pergunta é: mais do que você pensa.
Ao manejar apenas esse dado, empresas conseguem informações sensíveis sobre a sua vida. Uma delas, por exemplo, é onde você mora. Isso acontece por conta que seu número de IP é o equivalente ao seu “CPF digital”. Ele consiste em uma identificação única para cada computador conectado a uma rede.
Outros tipos de informações, como seu número de telefone e a marca do seu celular, também podem ser obtidas pelo Facebook com os novos termos de uso. Se observarmos atentamente, é notável que esse tipo de dado possui uma grande função comercial. Eles permitem que as empresas tracem perfis demográficos de seus clientes, criando anúncios direcionados especialmente para você.
Segundo um FAQ do WhatsApp, as informações que serão compartilhadas são:
- Informações de registro da conta (como o número de telefone);
- Dados de transações (a plataforma anunciou em 2019 que iria lançar um serviço de meios de pagamentos integrado ao aplicativo);
- Informações relacionadas ao serviço;
- Informações sobre como você interage com outras pessoas (incluindo empresas);
- Informações do aparelho móvel;
- O endereço de IP.
O WhatsApp já informou que o principal motivo para tais mudanças é aprimorar a experiência das empresas que utilizam o serviço Business da plataforma. Mas quais serão os efeitos práticos desse “aprimoramento”?
Como as empresas são afetadas pela nova política de privacidade?
A empresa define seu serviço “Business” como uma ferramenta para “ajudar as empresas a se conectar com seus clientes, dar destaque a seus produtos e serviços, responder dúvidas durante o processo de compras de seus clientes”.
Um exemplo prático do uso desses serviços são as contas comerciais, utilizadas por muitos
negócios para realizar atendimento ao cliente e pós-venda de produtos.
A nova atualização dá novas funcionalidades para essa ferramenta, aprimorando o serviço de hospedagem do Facebook. Esse consiste em uma plataforma onde os negócios podem gerenciar as conversas com seus clientes. Em comunicado, a empresa informou que “as informações compartilhadas na conversa podem ser utilizadas pela própria empresa para fins de marketing, inclusive para fazer publicidade no Facebook.”
Outra finalidade para os dados é permitir que os usuários entrem em contato direto com os negócios ao verem um anúncio no Facebook. De acordo com a big tech, usuários que tiverem o WhatsApp instalado em seus celulares poderão enviar mensagens diretamente para as empresas através de um botão, que será incluído na rede social.
A empresa também informa que o conteúdo de conversas pessoais ou em grupos continuará sendo sigiloso e protegido por criptografia.
E se eu não quiser compartilhar meus dados?
Truzzi conta que uma opção para os usuários insatisfeitos é migrar para outros aplicativos, como o Signal ou Telegram, cujas políticas de privacidade são mais restritas e impedem o compartilhamento de dados dos usuários.
O conselho da advogada já foi seguido por diversos usuários. Um deles é a médica dermatologista Anna Park. Segundo ela, ao deter o controle da maioria dos aplicativos que usa diariamente (como Facebook, Instagram e Messenger), a big tech consegue saber mais da sua vida do que ela estaria disposta a revelar. “Com base em apenas alguns dados, os algoritmos são capazes de obter informações que eu não tenho consciência de ter fornecido.”
Estudos do setor de marketing digital corroboram para a visão de Park. Um deles é o “Demographic Prediction Based on User’s Browsing Behavior” (2007), em que engenheiros da computação mostram como deduzir dados demográficos de usuários com base em seus hábitos de consumo de mídia.
A mesma preocupação é compartilhada pelo empresário Arthur Blanco Lima. “Todas essas empresas possuem um dono só. Um dono que já se viu envolvido em diversos escândalos de vazamento de dados”, diz, se referindo a Mark Zuckerberg, CEO do Facebook.
Tanto Blanco Lima quanto Anna Park afirmam que as novas políticas de privacidade afetaram a forma que utilizam a plataforma. A migração para novos aplicativos (principalmente o Telegram) foi a alternativa encontrada para evitar que as big techs utilizem seus dados.
Mas isso não soluciona o problema. Dentre as principais reclamações dos dois internautas está o fato de o seu círculo social ainda estar usando a rede social do Facebook. “Se nenhum dos meus amigos ou contatos profissionais usarem o Telegram, mudar de plataforma perde o sentido.”
Entretanto, tudo indica que há chances desse cenário mudar. Em janeiro de 2021, o Telegram informou que sua base de usuários atingiu a marca de 500 milhões – o que representa um crescimento de 100 milhões em comparação com abril de 2020. Um relatório divulgado pela consultoria Sensor Tower também informou que o aplicativo foi o mais baixado durante o segundo e terceiro trimestre de 2020, com um total de 80 bilhões de download no período.
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