A ARBITRAGEM QUE VAI ALÉM DO FUTEBOL
- Por Ivan Ventura
- 11 min leitura
A ARBITRAGEM é um mecanismo de solução de conflito extrajudicial previsto no Código de Defesa do Consumidor (CDC) e em outras leis, que nunca foi popular entre os especialistas no assunto. Alguns dizem que o modelo prevê uma negociação privada entre empresas e clientes (o que resultaria em desequilíbrio de forças) e não produziria jurisprudência (ou estudos sobre os casos práticos) justamente por ser uma negociação a portas fechadas, o que colocaria em risco a defesa do consumidor.
Outros defendem que a arbitragem nas relações de consumo também pode ser pública (caso da Espanha) e alegam que o mecanismo pode ajudar a desafogar o Judiciário que hoje analisa mais de 10 milhões de processos relacionados ao direito do consumidor – ou 10% de todos os processos existentes no País.
O fato é que o assunto, com todos os argumentos contrários e favoráveis, é a mais recente aposta da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) na criação de duas novas medidas já em discussão no órgão público: o Centro de Arbitragem de Consumo e o uso da plataforma Consumidor.gov.br como um hub de sistemas de negociações extrajudiciais, incluindo a própria arbitragem.
Recomendação internacional
A possibilidade de adoção da arbitragem e de outras formas de resolução de conflito vem sendo discutida em uma comissão no Conselho Nacional de Defesa do Consumidor criada no ano passado pela Senacon.
“No momento, há um debate sobre o relatório de um consultor contratado pela Senacon. Ele trouxe o diagnóstico e a discussão está completamente aberta. Mas, diante do elevado índice que nós temos hoje de passivo no Poder Judiciário, o próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem feito diversos seminários dizendo que devemos apostar em métodos alternativos de solução de demandas porque o Judiciário, além de tudo, é lento. Praticamente 10% dos passivos processuais são de demandas relacionadas à defesa do consumidor. Por isso, seria muito mais interessante esgotar os métodos alternativos em vez de levar todas essas demandas ao Poder Judiciário”, explicou Juliana Oliveira Domingues, secretária nacional do consumidor.
Luciano Benetti Timm, ex-secretário nacional do consumidor e um dos integrantes do conselho que discute o tema, afirma que a adoção de medidas para desafogar o Judiciário surgiu de uma demanda de organismos internacionais, caso da UNCTAD (sigla em inglês para a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
“Nós estamos seguindo as recomendações internacionais. A UNCTAD e a OCDE recomendam o uso de plataformas digitais e a adoção da mediação e arbitragem on-line”, disse.
Estudo
A partir das recomendações internacionais e da necessidade de desafogar o Judiciário, a Senacon contratou um consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para entender esses mecanismos.
O estudo possui 294 páginas e foi feito pelo consultor e advogado Napoleão Casado Filho. Nele, foram analisados diversos aspectos da arbitragem e de outras formas de solução de conflito extrajudicial: da legislação brasileira, passando por estudos de casos internacionais, viabilidade econômica e outros assuntos.
O resultado do levantamento foi a sugestão para a criação de um mecanismo de desjudicialização dos conflitos de consumo no Consumidor.gov.br (hoje uma ferramenta de conciliação), transformando‑o em um sistema que os juristas definem como “multiportas”. Na prática, o “Gov” seria transformado em um hub de solução de conflito on-line do Poder Público com todas as formas de resolução extrajudicial previstas na lei brasileira, caso da negociação direta com a empresa, mediação, arbitragem, auxílio dos Procons, resolução pelo Poder Judiciário (utilizando a plataforma de processo eletrônico já em uso da Justiça) e a resolução por um Centro de Arbitragem.
“O embasamento jurídico que tivemos foi, majoritariamente, o Código de Defesa do Consumidor e a Constituição. As fases do sistema que propusemos são bastante simples: o consumidor inicia sua reclamação no Consumidor.gov.br. e, caso não consiga solucionar sua queixa por uma negociação direta, serão facultados, a ele, todos os outros métodos que sugerimos: mediação, Procon, arbitragem, Poder Judiciário. Tudo isso pelo canal centralizado do Consumidor.gov.br, facilitando muito a experiência do usuário”, explicou Casado Filho.
Centros de Arbitragem de Consumo
Outra medida sugerida a partir do estudo é a criação de Centros de Arbitragem de Consumo (CACs), que seriam espaços nos quais consumidor e cliente se reuniriam e o problema seria resolvido por meio de um ou mais árbitros (normalmente um advogado).
A ideia é que o CAC concorra com o chamado Juizado Especial Cível (JEC), que hoje é gratuito e resolve o valor de 40 salários mínimos. No CAC não haveria essa limitação.
De acordo com a proposta, o acesso ao Centro de Arbitragem somente aconteceria após a tentativa frustrada de resolução do conflito na negociação direta com a empresa dentro do Consumidor.gov.br. O consumidor e o fornecedor, então, fariam o cadastro e a apresentação dos argumentos e das provas ainda na plataforma. O CAC, por sua vez, analisaria o caso e decidiria se ele seria “arbitrável”. Se fosse aceitado, o imbróglio seria analisado por um árbitro (se o valor do conflito for de até 50 salários mínimos) ou mais (se for superior a 50).
Um detalhe importante sobre a proposta da consultoria é o acesso ao Centro Arbitral. A proposta prevê que a arbitragem somente aconteceria por iniciativa exclusiva do consumidor e não de uma empresa. Em tese, essa medida descartaria a imposição da arbitragem ao consumidor por meio de uma cláusula prevista no contrato de prestação do serviço ou de compra de um produto – o que é proibido pelo Código de Defesa do Consumidor, mas previsto na Lei de Arbitragem.
Além disso, a arbitragem, segundo o consultor, não seria sigilosa e as decisões seriam abertas à consulta pública, inclusive por outros Centros de Arbitragem e até pelo Poder Público para a formulação de políticas públicas. Isso evitaria a parcialidade ou a falta de técnica jurídica dos árbitros na decisão.
“O único capaz de iniciar um procedimento arbitral seria o consumidor, diante do que chamamos de princípio da unidirecionalidade. A instauração do processo arbitral, portanto, dependeria exclusivamente do consumidor. Os documentos que ele utilizou durante a negociação no Consumidor.gov.br seriam automaticamente levados à análise do Centro de Arbitragem, que examinaria a arbitrabilidade da demanda. A arbitragem seria conduzida como um processo normal, com contraditório, ampla defesa, até prolação da sentença. Prevemos uma média de prazo de 40 dias para tanto”, explica o consultor do PNUD.
Quem financia?
Um detalhe que pode impedir que a medida seja aprovada é a origem do financiamento do Centro de Arbitragem. A proposta prevê que o dinheiro viria da iniciativa privada, assim como já acontece na arbitragem consumerista em países como os Estados Unidos. Empresas ainda pagariam os honorários do árbitro, que variam de 1 a 40 salários mínimos e mais um valor extra (pago a cada árbitro). O valor varia conforme o valor do problema entre consumidor e empresa.
O próprio consultor admite que o financiamento privado é um entrave para a criação dos Centros de Arbitragem. De fato, advogados que representam setores da economia, ouvidos pela reportagem sob anonimato, são contrários ao financiamento privado desse modelo, entre outros motivos, pelo alto custo que será gerado às empresas e que provavelmente poderia ser repassado ao consumidor.
Por fim, há dúvidas sobre a lisura de uma arbitragem financiada por empresas. Afinal, empresas pagariam árbitros nos casos em que o consumidor tem sempre razão? “Não há nenhum incentivo para que os árbitros se comportem de maneira parcializada. Optar pela arbitragem de consumo será uma faculdade apenas do consumidor (princípio da unidirecionalidade). Caso os árbitros, de modo generalizado, apresentem decisões parcializadas, o método será abandonado pelos consumidores que querem resolver suas queixas. Além disso, os Centros de Arbitragem e os próprios árbitros seriam bastante monitorados pelo Poder Público, e decisões parcializadas poderiam ser alvo de represálias e, inclusive, de nulidade.”
Financiamento público ou pago pelo consumidor?
O estudo aponta, ainda, para outras duas fontes de financiamento dos CACs: o financiamento público e a cobrança de uma tarifa simbólica do consumidor.
No caso do financiamento público, a proposta foi praticamente descartada justamente pelo orçamento apertado do Poder Judiciário. Além disso, muitos tribunais mantêm núcleos de conciliação extrajudiciais – os NUPEMECs, que são apontados como concorrentes da arbitragem.
Além disso, o levantamento avalia a possibilidade de o próprio consumidor pagar um valor simbólico e não superior a R$ 50 para ter acesso à arbitragem de consumo. Para viabilizar essa proposta, o estudo sugere que a cobrança seja estendida ao Juizado Especial Cível, que hoje é gratuito. Sem isso, consumidores continuariam a preferir o juizado justamente pela gratuidade. O consultor admite que essa é uma possibilidade remota e que somente seria implementada em médio ou longo prazo.
Opiniões
O estudo, no entanto, procurou defender um caminho possível para o uso de métodos alternativos de soluções de conflito. O comitê dedicado a discutir o tema das soluções extrajudiciais avalia outras soluções, como a mediação e até a inclusão digital dos Procons – eles fariam a mediação entre consumidor e empresa por meio de uma plataforma digital.
A possibilidade de adoção da arbitragem e de outras formas de resolução de conflito vem sendo discutida em uma comissão criada no ano passado pela Senacon
Um dos participantes do comitê é a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), que foi a primeira agência reguladora a ingressar no Consumidor.gov.br. Cristian Vieira dos Reis, gerente de Regulação das Relações de Consumo da ANAC, explica que existem diferentes modelos sendo analisados pelo comitê. No entanto, independentemente do modelo que será adotado, a agência defende que ele tenha mais de uma opção para o consumidor e que seja gratuito.
“Do ponto de vista da ANAC, o importante é que o consumidor receba um atendimento adequado, respeitoso, acessível, gratuito, célere e resolutivo, preferencialmente pelos próprios fornecedores no primeiro contato. Mas, quando isso não for possível ou se tiver falhado, é necessário que o consumidor possa obter uma solução para o conflito por meio de outros mecanismos efetivos”, afirma.
A Consumidor Moderno também ouviu dois desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro com posições antagônicas sobre a arbitragem nas relações de consumo. Werson Rêgo defende o uso de métodos extrajudiciais para impedir o acesso de ações consumeristas no Judiciário por meio, por exemplo, da arbitragem.
Já Marcelo Buhatem, desembargador e presidente da Associação Nacional de Desembargadores (Andes), defende que empresas e consumidores tentem resolver os seus problemas fora do Judiciário. Caso não exista um acordo, o tribunal receberia as ações consumeristas.
“Arbitragem é para rico. Ela é ótima no papel, mas, no dia a dia, na hora de o consumidor resolver o problema do celular ou depois de comprar uma panela com defeito, não se aplica. Temos uma enxurrada de processos que não passam de R$ 3 mil a R$ 4 mil. Os Nupemecs gastam uma fortuna para fazer conciliação de um culpado que não é o Judiciário: é o fornecedor. Sobre essas formas de composição multiportas, eu, sinceramente, vou dizer que prefiro que essa porta não seja aberta na Justiça. Ela não precisa ser fechada, mas ela precisa ser dificultada. Eu defendo apenas a conciliação. Se provado que não houve conciliação, vamos à Justiça”, disse Buhatem. Que o debate sobre o assunto comece e termine com alguma solução – para o bem do consumidor.
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