#Somos todos híbridos. Ou seremos
- Por Jacques Meir
- 6 min leitura
PHYGITAL É TUDO ISSO E UM TANTINHO A MAIS. Phygital é uma nova forma de compreender a evolução humana nesses tempos estranhos. A convivência com a pandemia decerto acelerou nossa convivência forçada e pacífica, necessária e descartável, ambígua e assimétrica com o digital. No livro A Tecnologia que Muda o Mundo, o pensador, cientista da gestão e provocador, Clemente Nobrega, diz que em um futuro próximo a humanidade será composta por “centauros” (alusão à figura mítica meio homem, meio cavalo), híbridos de humanos e cibernéticos, que representariam uma espécie de próximo passo da evolução.
Foi uma das primeiras abordagens do que chamo de “hibridização” da vida. Em química, o conceito de hibridização significa a “fusão de orbitais atômicos incompletos que ocorre quando os elétrons de um átomo são excitados ao receber energia do meio externo”. Aplicado à nossa realidade, podemos dizer que nossos sentidos, nossas escolhas e nossas mentes estão sendo estimulados por “energias digitais” e algoritmos que, de certa forma, procuram se “combinar” conosco. O resultado disso é uma nova forma de encarar o mundo, tomar decisões, se relacionar, trabalhar e, logicamente, consumir.
Sim, estamos todos agora, em maior ou menor grau, nos tornando híbridos: phygitais, centauros, amálgamas de Inteligências Artificiais e Emocionais, meio sem sentir, sem saber, sem notar. Parece especulação? Repare na naturalidade com que você, leitora ou leitor, trafega entre telas, e delas para o mundo físico. Repare como facilmente manuseia um totem interativo em um shopping ou em um fast-food. Veja como conseguiu se adaptar ao home office forçado e às reuniões no Zoom, no Teams ou no Meet. Agora pense no quanto o movimento à sua volta parece monótono diante do conteúdo do seu celular. Nesse momento em que escrevo – no notebook – escuto uma conversa sobre organizações resilientes no Clubhouse sem me distrair e sem perder o fio da meada do debate.
Da mesma forma, vejo pessoas trafegarem nas lojas físicas e optarem por uma experiência digital ali mesmo, como se esse comportamento fosse inato. O consumidor tornou-se phygital, agnóstico de canal, e isso impele empresas a se tornar phygitais também. Porque a vida em si está se tornando híbrida. Mesmo pessoas humildes já se conectam com ambientes digitais por meio dos cartões do Bolsa Família, do auxílio emergencial e do onipresente WhatsApp no celular.
O phygital em si é uma das facetas da nossa “hibridização”. Ao longo de nosso cotidiano, combinamos dualidades o tempo todo: o equilíbrio de corpo e mente, de tensão e bem-estar, do pessoal e do profissional, do transacional e relacional, da razão com a emoção, do humano e do tecnológico, do físico e do digital. Essa dualidade – física e digital – quando combinada, misturada a um ponto indistinguível, reinventa o significado de nossas atitudes e hábitos. O digital está presente na música que ouvimos, no filme que vemos, na refeição que nos alimenta, nas rotinas de trabalho, mediando nossos relacionamentos, viabilizando nossos contatos com o mundo, nos estimulando a participar de redes orquestradas em favor de uma causa, manifestação ou ativismo. Atividades profundamente humanas ganharam maior amplitude no looping digital que nos envolve.
Pois bem, se nos tornamos híbridos de um jeito tão natural, o que isso diz sobre a forma pela qual consumimos, nos relacionamos com empresas, marcas, lojas? Ou, por outro lado, o que empresas devem fazer para se amoldar a um consumidor que já adotou uma mentalidade que dilui o digital e o físico sem questionamento, sem fronteira, sem intervalo? Essa adoção digital aconteceu de maneira quase natural, foi “incorporada” ao nosso jeito de ser, ao passo que nas empresas em geral, mesmo em muitas nativas digitais, esse processo precisa ser estimulado, aprendido, desenvolvido. Eis aí o grande dilema, o desafio sutil que toda organização enfrenta e que nubla visões, intenções e ações: empresas são processos puramente físicos, conduzidas por pessoas para atingir resultados estritamente palpáveis. “Hibridizar” uma empresa vai além de enfrentar uma transformação digital (em si impossível), porque significa caminhar indistintamente pelos ambientes virtual e real sem dificuldade. É quase como dar um passo na Terra com as condições de temperatura, pressão e gravidade conhecidas e dar o passo seguinte na Lua, sem sentir nenhuma diferença. Como indivíduos, esse passo a passo acontece intuitivamente. Como organizações, o processo é um sacrifício, desligando e ligando funções, culturas e processos e diferentes a cada passo.
Logo, por mais que haja ciência, mineração e mapeamento de dados, capacidade analítica, preditiva e cognitiva, a velocidade de tomada de decisão para reagir a uma rede de clientes híbridos tende a ser mais lenta que a movimentação dessa massa. É por isso que negócios exponenciais ganham espaço, escala e predominam de maneira exorbitante atualmente: porque conseguem “alimentar” e estimular a energia digital dos consumidores continuamente, incentivando abertamente sua “hibridização”. Na verdade, o grande trunfo das Big Techs – sua fonte de poder e a fonte dos temores fundamentados que geram – é que elas têm DNA híbrido. Na sua concepção, por trás de toda a lógica digital, havia uma das mais incontroláveis emoções humanas: a ambição. O reflexo disso está na forma pela qual algoritmos são desenhados e como eles justamente enfatizam a polarização – uma forma de dualidade que motiva a própria “hibridização”, uma simplificação da maneira de ver o mundo que sufoca a nuance, a complexidade, a indecisão, a ponderação de variáveis.
Quanto mais o mundo se torna complexo, phygital, mais demandamos seres humanos aptos a lidar com esse ambiente combinado. Expurgamos a complexidade característica de nossas decisões para que possamos ser mais “eficientes” como humanos: binários, polarizados e confortavelmente híbridos”.
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