Defesa do Consumidor

CM Indica: periferia é um celeiro para relações de consumo

O Brasil tem 11.403 de periferias. Nelas, há 6,6 milhões de domicílios que abrigam 16 milhões de pessoas vivem e consomem. Os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Isso significa que as periferias brasileiras são verdadeiros celeiros para empreendedores. Por dois motivos. Em primeiro lugar, nas periferias, o empreendedorismo surge como resposta à falta de oportunidades. Pequenos negócios, como food trucks e lojas, são exemplos de como a criatividade se destaca em ambientes desafiadores

Em segundo lugar, as relações consumeristas na periferia não representam apenas uma questão econômica, mas um movimento de resistência e inovação. Isso porque quando as pessoas escolhem produtos locais, elas não só apoiam a economia da própria comunidade, mas também fortalecem laços e geram empregos. Por consequência, o consumo local transforma realidades e fomenta um ciclo de crescimento sustentável.

Para explorar como esse cenário se desenha, a associação Aventura de Construir (AdC) acaba de lançar seu primeiro livro Brilhos da Periferia: Narrativas de Empreendedorismo e Resiliência. Em suma, a obra celebra os 13 anos de trajetória de apoio aos microempreendedores de baixa renda das periferias do Brasil. Dessa forma, ela reúne 18 histórias de pessoas que, movidas pela necessidade e determinação, transformaram suas vidas e suas comunidades por meio do empreendedorismo.

Negócios da periferia

O livro, com 18 histórias, mostra que, quando empreendedores das comunidades criam negócios, geram emprego e renda, eles também contribuem para a redução da desigualdade social. Ademais, a obra mostra o quanto as iniciativas de empreendedorismo na periferia fomentam a construção de uma identidade cultural e fortalecem os laços comunitários. À medida que as pessoas se engajam em negócios locais, há um aumento na valorização dos produtos e serviços regionais, que podem ser vendidos tanto localmente quanto em mercados externos. Isso não apenas melhora a autoestima dos moradores, mas também atrai visitantes e investidores, criando um ciclo virtuoso de crescimento.

E, em síntese, ao estimular o consumo de produtos e serviços locais, as comunidades não apenas fortalecem sua economia, mas também promovem uma maior inclusão social. Em entrevista à Consumidor Moderno, a economista Silvia Caironi, presidente da Aventura de Construir, fala sobre o lançamento e os propósitos do livro, publicado pela Editora Inverso.

Transformação nas periferias

Da esq para dir: Marli Pirozelli, Sílvia Caironi, Manuel Molina, ⁠Michele Aparecida da Cruz, ⁠Adriana Barros e ⁠Carlos Ferreirinha.
Consumidor Moderno: Como surgiu a ideia do livro?

Silvia Caironi: Um amigo italiano jornalista do maior cotidiano econômico e financeiro de Itália, que conhece a AdC, me provocou dizendo que era o momento de fazer conhecer mais amplamente e profundamente a transformação gerada através do nosso trabalho. Assim, em janeiro deste ano, definimos juntos com os responsáveis da AdC que iríamos abraçar este desafio. Desde o início, para todos nós, foi evidente que contar da AdC implicava contar de alguns dos encontros e histórias de mudança que vimos acontecer ao longo destes anos. Não tinha nada mais potente que isso! Por isso o título “Brilhos da Periferia: narrativas de empreendedorismo e resiliência”.

CM: Quais serão os impactos dessa obra, a seu ver, nos empreendedores e consumidores de locais mais afastados dos grandes centros?

Cada uma das 18 histórias mostra uma riqueza e uma diversidade impressionantes em termos de maturidade do empreendimento, território de atuação, setor, fase da vida da pessoa envolvida, contexto e muito mais. São somente exemplos daquilo que vemos acontecer nestes anos acompanhando milhares de empreendedores de forma sistemática e contínua. Portanto, entendemos que esta obra pode ajudar a perceber que é possível uma mudança profunda e sustentável na vida de cada um(a) e que tem um caminho a ser feito, cheio de desafios mas que se pode percorrer. E a ideia é fazer com que eles percebam que não estão sozinhos nesta jornada. A AdC se coloca ao lado de quem carrega este desejo e quer abraçar esta “aventura” de forma responsável.

Deixar a pessoa na periferia

CM: Por anos a fio, nós acompanhamos muitos políticos, principalmente em promessa de campanha, falar sobre “tirar a pessoa da periferia” para dar emprego, lazer, entretenimento, etc. Entretanto, partindo do ponto de vista da inclusão, não seria melhor criar oportunidades e expectativas nesses lugares? Qual sua opinião sobre isso?

Absolutamente sim. Na AdC sempre trabalhamos enxergando o potencial destes lugares: criatividade, capacidade de enxergar soluções aos problemas de forma mais sustentável, senso de pertencimento, solidariedade, amor à vida e muito mais. Por isso têm “brilhos nas periferias”. Favorecer e fortalecer as iniciativas que nascem, esse é o caminho. Que tenham negócios, e melhor ainda negócios de impacto.

CM: O empreendedorismo nas periferias pode favorecer os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030?

Sim, muito! Os negócios nas quebradas permitem que as comunidades cresçam, gerem renda e trabalho, favorecendo vários ODS. Entre eles, destaque para o 8, por exemplo, que trata do trabalho decente e desenvolvimento econômico. Ademais, há o 10 (Redução das desigualdades), o 11 (Cidades e comunidades sustentáveis), o 13 (Ação contra a mudança global do clima) e finalmente o 17 (Parcerias e meios de implementação). Trata-se de não fazer para, mas fazer com.

Potencial de consumo nas periferias

CM: Qual é o potencial de consumo nas periferias, visto que as favelas brasileiras contemplam cerca de 16 milhões de moradores?

O ponto verdadeiro não é somente o potencial de consumo, que com certeza é enorme, mas que trate-se de consumo sustentável e de passar uma educação em termos de saúde alimentar, saúde mental, cuidado do meio ambiente que solicita a olhar mais em profundidade estes lugares e quem mora neles. As periferias não são e não podem ser vistas como terras de “exploração”.

CM: As empresas das periferias ainda ficam “à margem” das grandes marcas. Por que?

As grandes marcas estão mostrando sempre mais interesse em alcançar as periferias e trabalhar com elas. Precisamos que estes passos não se concretizem para responder a uma moda ou a uma necessidade de imagem, mas que respondam a uma visão de construção conjunta, valorizando as potencialidades de cada parte e a centralidade da pessoa. Somente desta forma a transformação pode se tornar duradoura.

Os próximos passos

CM: Quais são suas expectativas após o lançamento do livro e os próximos passos da Aventura de Construir?

Este livro colocou ainda mais em evidência uma forma de trabalhar. E esse é o horizonte que na AdC acreditamos e sempre apostamos: a construção conjunta e a transferência da inovação. Trata-se de um livro inclusivo: além das histórias em formato de storytelling, tem vídeos e podcast com entrevistas da jornalista Mariana Kotscho a cada empreendedor. Precipuamente, contamos com depoimentos de vários especialistas do terceiro setor como a palestrante Silvia Naccache do GEVÊ, a Adriana Barbosa da Feira Preta e o Carlos Ferreirinha, da MCF, especialista em inteligência de mercado, que construíram junto conosco este livro. As duas autoras, Marli Pirozelli e Adriana Barros, a microempreendedora Adriana Barros e a professora Marli Pirozelli, e os financiadores foram essenciais para chegar nesse resultado. Além de todo o nosso trabalho como equipe da AdC, claro. Este processo, sem dúvida, fortaleceu um método. Portanto, as nossas expectativas nascem desta mesma experiência: mostrar sempre mais que precisa apostar na construção conjunta (ODS 17) e sistemática. Essa é uma visão que almejamos propor a quem trabalha com o S do ESG.

Histórias

Entre as histórias do livro Brilhos da Periferia: Narrativas de Empreendedorismo e Resiliência“, destaque para Manuel Efraim Carrion Molina, imigrante peruano em São Paulo, fundou a empresa “1001 utilidades”, oferecendo serviços de pintura, elétrica e assistência técnica para residências e estabelecimentos. Natural de Huancayo, Peru, ele chegou ao Brasil em 2019, mas a pandemia impactou seus planos, resultando na perda de emprego e dificuldades financeiras. Sem conseguir revalidar seu diploma em Zootecnia, Manuel se dedicou a cursos de elétrica e se voluntariou para melhorar seu português.

Ele participou do projeto ProtagonizAqui, voltado para imigrantes, onde descobriu possibilidades de atuação no setor de serviços. Com o apoio do projeto, ganhou um capital-semente, que investiu na formalização e aprimoramento de seu negócio. Através da AdC, ele aprendeu a gerenciar suas finanças e a promover seus serviços, atualmente trabalhando ativamente e sonhando em criar uma rede de prestadores de serviços. Além disso, continua se especializando em elétrica e deseja ajudar outras pessoas em sua trajetória.

Autonomia

Outra história é da Pedale-se, criada por Rogério Rai no extremo leste de São Paulo. O intuito era promover a cultura da mobilidade e a autonomia através do uso da bicicleta. Rogério, que não se considera um empreendedor, tem uma longa relação com o ciclismo, que começou com a venda de bicicletas e um trabalho como entregador. Em 2019, um curso sobre “viver com a bicicleta” o levou a pensar no uso desse meio de transporte de forma mais ampla.

A pandemia fez com que ele adaptasse suas ideias, mas sua paixão pela bicicleta e seu ativismo o conduziram a desenvolver um projeto em 2021 que combina história e ciclismo, criando roteiros que permitem aos participantes explorar o património histórico e cultural da periferia paulistana. Em 2023, a Pedale-se já se encontrava em plena atividade após diversas formações e experiências de Rogério no campo do empreendedorismo.

Por fim, o livro deixa claro que o apoio ao empreendedorismo nas periferias é um passo importante para a construção de cidades mais justas e equitativas, onde todos têm a oportunidade de prosperar.

*Foto do lançamento do livro: Sofia Missiato Barbuio.

Danielle Ruas

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